Matriz de N. S. das Dores. Foto: Philadelpho. S/d (provável década de 1930). Fonte: Carlos Cunha Corrêa "Serra da Saudade", 1948. |
Uma de minhas
memórias mais caras é o som do sino da Matriz de N. S. das Dores, em Dores do
Indaiá. Desde quando minha família voltou de São Paulo para Minas Gerais, em
1947, passamos por Dores antes de meus pais morarem em Campos Altos, um
município vizinho. Portanto, desde meus três anos, convivo com a sonoridade
discreta deste marcador do tempo que também marcou de forma indelével minha história.
Este som ficou gravado em mim e, mesmo há tantos anos sem visitar a terra de
meus antepassados, sou capaz de recriá-lo em meu universo cognitivo como se o
estivesse ouvindo em tempo real. A cada quinze minutos uma esperada e
harmoniosa badalada. A cada hora uma celebração de mais um tempo vivido, de
algo mais aprendido, de mais uma esperança renovada para os próximos quinze
minutos. Um som inconfundível que fez parte de minha vida de menino e jovem.
Algumas pessoas têm esta capacidade de reviver cenas de seu passado como se as experimentassem neste exato momento. É o caso do grande escritor francês, Marcel Proust, que em sua imortal obra "Em Busca do Tempo Perdido", relata suas vívidas memórias de infância, quando visitava sua tia Léonie, na pequenina cidade de Combray (na verdade, Illiers, na vida real) e lhe era servido o chá com um pequeno biscoito chamado "madeleine". O cheiro do chá com madeleine fazia-o reviver, imediatamente, grandes e detalhados lances de sua infância. O mesmo também ocorria com Dostoievski. Ele descreveu de forma precisa em seu clássico "O Idiota", na pessoa do personagem Príncipe Mishkin, tudo o que lhe passou pela mente, todas as lembranças pretéritas, como em um filme projetado rapidamente, nos minutos que antecederam ao seu fuzilamento simulado.
Eu, como um cão condicionado de Pavlov, tenho este som associado à bela imagem desta matriz de tão caros e memoráveis eventos de meninice, associado também às emoções de quem cresceu sonhando e planejando um futuro, quiçá em distantes paragens. Lembro-me bem, e quanto lembro, meu Deus!, que às seis da tarde, logo após as seis badaladas, as mais belas que já ouvi - que me perdoe o Big Ben ou o sino da Torre Troytskaya do Kremlin – ouvia a tão esperada reprodução em disco de acetato da canção italiana “Torna a Surriento” em alto-falante da torre da igreja Matriz.
Algumas pessoas têm esta capacidade de reviver cenas de seu passado como se as experimentassem neste exato momento. É o caso do grande escritor francês, Marcel Proust, que em sua imortal obra "Em Busca do Tempo Perdido", relata suas vívidas memórias de infância, quando visitava sua tia Léonie, na pequenina cidade de Combray (na verdade, Illiers, na vida real) e lhe era servido o chá com um pequeno biscoito chamado "madeleine". O cheiro do chá com madeleine fazia-o reviver, imediatamente, grandes e detalhados lances de sua infância. O mesmo também ocorria com Dostoievski. Ele descreveu de forma precisa em seu clássico "O Idiota", na pessoa do personagem Príncipe Mishkin, tudo o que lhe passou pela mente, todas as lembranças pretéritas, como em um filme projetado rapidamente, nos minutos que antecederam ao seu fuzilamento simulado.
Eu, como um cão condicionado de Pavlov, tenho este som associado à bela imagem desta matriz de tão caros e memoráveis eventos de meninice, associado também às emoções de quem cresceu sonhando e planejando um futuro, quiçá em distantes paragens. Lembro-me bem, e quanto lembro, meu Deus!, que às seis da tarde, logo após as seis badaladas, as mais belas que já ouvi - que me perdoe o Big Ben ou o sino da Torre Troytskaya do Kremlin – ouvia a tão esperada reprodução em disco de acetato da canção italiana “Torna a Surriento” em alto-falante da torre da igreja Matriz.
Quando, décadas mais tarde, passeava eu pelas estreitas ruas,
circulando penhascos medonhos e maravilhosos, de Sorrento, vila da Campania,
próxima a Nápoles, vendo as laranjeiras carregadas de frutos amarelando, como
árvores ornamentais nos passeios e ruelas, me lembrei imediatamente da Matriz
de N. S. das Dores.
Saí de Dores, mas Dores não saiu de
mim, parte por culpa destes fantásticos sino e relógio. Quando ali voltava em
outros tempos, as tão esperadas badaladas, traziam-me, imediatamente, as
vívidas recordações de infância, agora regadas por um amargo sentimento de
falta, de perda, de ausência, de um vazio impreenchível, depois que tantos
entes queridos daquela época já haviam partido. Ao ver a torre da Matriz, com
sua face iluminada pelo sol do oeste mineiro, voltada para o horizonte da Serra
da Saudade, com seu azul em degradê, no brilho das
tardes mornas, com a brisa a roçar o rosto, o silêncio urbano e sonolento
entremeados por ruídos modorrentos da urbe pequenina, vinha-me uma tristeza
infinita. Diversas vezes flagrei-me com lágrimas furtivas.
Revendo algumas
fotos antigas de meu acervo, decidi-me por empreender uma pequena pesquisa
sobre este relógio e este sino que foram minha sina enquanto vivi nestas suaves
colinas desta pequena cidade do Campo Grande.
A Igreja da
Matriz de N. S. da Conceição de Dores do Indaiá teve sua construção iniciada em
1914 e foi concluída em 1921. É réplica da Igreja Matriz do Pilar, de Pitangui,
também construída no mesmo período, após incêndio da antiga igreja do século
XVIII.
Matriz do Pilar, Pitangui. Foto de autor desconhecido. S/d. |
Matriz do Pilar de Pitangui. S/d - Autor desconhecido. A matriz tem quatro sinos, todos dos séculos XVIII e XIX, pertencentes à antiga matriz incendiada em 1914. Foto: Arquivo da Câmara Municipal de Pitangui. Blog: "Daqui de Pitanguy". |
Foram ambas
construídas com plantas do mesmo engenheiro-arquiteto, Dr. Francisco Palmério,
em estilo neogótico eclético. A de Pitangui foi construída pelo engenheiro
Benedito José dos Santos e pelo chefe de obras Sétimo Caravita. Convidado, este
não pode participar da construção da igreja de Dores, mas indicou seus
auxiliares Fortunato Giordi e Ernesto Gatti, de origem italiana que foram os
responsáveis pela bela obra.
Engrenagem do relógio da Matriz. Foto: Paulo Cesar Pinto Ribeiro, 2012. |
A Matriz de Dores foi construída com recursos
financeiros doados pela comunidade. Um dos cidadãos que mais contribuiu para
sua edificação foi Felício Pinto Fiúza, fazendeiro e financista em Dores. O
relógio da Matriz é de origem suíça, da indústria J. C. Baer, construído em
1913, em Sumiswald, pequena cidade de cinco mil habitantes (censo de 2015), do
distrito de Emmental, cantão de Berna. A fábrica do relógio pertenceu a
tradicional família de relojoeiros suíços. Existem outras indústrias
relojoeiras na cidade, provavelmente pertencentes aos descendentes dos antigos
proprietários, em função da presença local de sobrenomes coincidentes, agora
modernizadas e com produtos digitalizados. O antigo relógio da Matriz, ainda
funcionando normalmente, foi adquirido e doado por Carlota de Sousa Coelho
(Cota), em 1915, para a Matriz. Cota era viúva de Felício que, por sua vez, era
um dos irmãos mais novos do pai de minha bisavó Etelvina Maria dos Santos (também conhecida como Vó Etelvina ou Etelvina Fiúza), Herculano Pinto Fiúza, o Dolor. Em homenagem ao casal
Felício-Cota, o relógio passou a ser chamado de “Felício”.
Placa mandada colocar no relógio por sua doadora, Carlota de Sousa Coelho. Foto: Paulo Cesar Pinto Ribeiro, 2012. |
Engrenagem do relógio da Matriz. Foto de autor desconhecido. S/d. |
Felício e Cota não tiveram filhos e tinham
muitas posses. Após se enviuvar, Cota doou uma fazenda, Cocais, para sua
sobrinha e grande amiga Etelvina. O avô de Cota
era o judeu José de Sousa Coelho (o Sousa nas grafias cartoriais está com S),
também conhecido como Juca de Sousa. Ele emigrara de Portugal, nascera na
região do Porto, para escapar da Inquisição. Juca veio para Pitangui
dedicando-se ao comércio.
Torre e relógio da Igreja de Sumiswald, Suíça. Construída em 1510-1512. Fonte: Wikipedia. |
Segundo
informações extraídas da obra "Do São Francisco ao Indaiá", do Prof.
Rubens Fiúza, 2003, (pp 119-152), Juca de Sousa teria sido um dos fundadores de Dores do Indaiá. Foi casado em segundas núpcias
com Ana Maria Milagres. Teria uma propriedade (sesmaria), área esta pertencente,
em parte, aos municípios de Dores do Indaiá e Quartel Geral. Sua enorme renda viria
de lavras clandestinas de diamantes e ouro. Desde 1736 já existia a Picada de
Goiás, variante de Pitangui-Paracatu, construída por Domingos de Brito. Ao
construir a picada, no alto de um planalto, erigiu o Rancho da Boa Vista, mais
tarde transformado no Arraial da Boa Vista, futura Dores do Indaiá. Este rancho
servia de pousada e descanso para os tropeiros e viajantes extenuados de longas
caminhadas diárias na picada. O local fica próximo onde é hoje a Escola Normal
de Dores.
Torre e relógio da igreja de Sumiswald, Suíça. Fonte: Wikipedia. |
Juca de Sousa seria
filho de judeus e sua família fugiu da Inquisição. Os Sousa Coelho procedem de
Portugal, região do Porto. Antes, tinham vindo da aldeia navarresa (de Navarra)
de Sefar, cujo nome vem da palavra Sefarad, que significa em hebraico
"Terra Prometida". O pai de Juca de Sousa teria morrido alguns anos
antes, queimado num Auto de Fé pela Inquisição, na Espanha. Em Portugal, foram
forçados a se converter ao catolicismo. José (Juca), sua mãe e seus irmãos emigraram
para o Brasil em meados do século XVIII (1752) e foram para Pitangui, onde se
tornaram importantes na política local e se destacaram como comerciantes e,
mais discretamente, mineradores e contrabandistas de ouro e diamantes para o
cartel judaico de Londres e Amsterdã. Juca prosperou tanto que se tornou
camarista (vereador) por várias legislaturas, entre 1760 e 1780.
Mesmo morando em
Pitangui, Juca construiu a casa mais antiga de Dores, na Praça São Sebastião, atual
Praça Alexandre Lacerda, número 30, em 1815. A parte de trás da casa foi
demolida e é de propriedade, atualmente, da filha do falecido sr. João Paulino,
renomado fazendeiro local. O filho de Juca de Sousa, Padre Francisco de Sousa
Coelho (1790-1860) continuou morando na casa após a morte do pai. Construiu
depois, em 1830, uma casa ao lado, no número 48, onde é hoje a casa da família
do Sr. Homero Ribeiro. O Padre Francisco estudou no Seminário de Mariana, onde
se ordenou sacerdote por volta de 1805. Após quatro anos, na ausência de
vocação, abandonou o sacerdócio. Casou-se com uma jovem de 13 anos, Jesuína
Marcelina Calabró (ou Véu, ou Braga, ou Zica). Segundo Rubens
Fiúza, a menina teria sido raptada. Eram comuns no período os casamentos com
meninas de 12, 13 e 14 anos. Tiveram diversos filhos, dentre eles Cota.
Casa construída por Juca de Sousa (José de Sousa Coelho), em 1815. Foto: Antônio Carlos Corrêa, 2015. |
Felício e Cota
viveram nesta casa de número 48. Após o falecimento de Felício, Cota permaneceu
aí enquanto viveu. Etelvina morava na
segunda casa à sua esquerda, na mesma praça, na esquina da Rua Rio de Janeiro.
Casa construída por Francisco de Sousa Coelho, filho de
Juca de Sousa, em 1830, número 48 da praça Alexandre Lacerda,
ao lado da casa de seu pai. Foto: Antônio Carlos Corrêa, 2015.
|
O casal
Felício-Cota adotou o filho natural de Felício (com uma índia de Goiás),
Ricardo Pinto Fiúza, conhecido como Major ou Ricardinho, que deu origem a
importante, conceituada e ilustre família de Dores do Indaiá. Cota o criou com
todo o carinho e atenção permitindo que ele se tornasse um importante cidadão
na história de Dores. Casou-se com Maria de Sousa Melgaço, a Sá Bilia, filha de
Luiza de Sousa Coelho, que, por sua vez, era filha do Padre Francisco de Sousa
Coelho. Luiza foi casada com o português Jacinto Esteves Melgaço, deixando
grande descendência nas famílias Sousa Coelho, Guimarães e Melgaço.
Vó Etelvina, filha de
Herculano Pinto Fiúza, o velho, irmão de Felício Pinto Fiúza, recebeu de
Carlota, sua tia e madrinha, de presente a Fazenda Cocais, onde a administrou
com pulso forte e grande tino administrativo. Neste local criou toda sua prole,
e até netos nasceram na fazenda, como o escritor Zezé Machado. Seus
descendentes pertencem às famílias Fiúza, Ribeiro, Coelho, Corrêa, Lacerda,
Oliveira, Souza, Botinha, Machado e outras.
Etelvina Maria dos Santos. Foto de autor desconhecido. Ca. 1935. Foto do acervo de Angélica de Oliveira Corrêa |
Fazenda Cocais. Foto de pintura que retrata a antiga fazenda. Do acervo de Paulo Ribeiro de Andrade. |
Agora mesmo, enquanto revivo na
memória este relato, na medida em que minhas cansadas retinas percorrem estas fotos de
álbuns familiares, não consigo evitar uma furtiva lágrima e um engasgo de
emoção. Haja coração!
Sorrento, na Costa Amalfitana, próxima a Nápoles, Itália. Foto: www.sorrentoturismo.com |
Antônio:
ResponderExcluirGostei demais desta matéria, pois me fez recordar bons momentos de minha infância em Dores.
Mas fiquei com uma grande dúvida, pois me recordo com clareza de ouvir o sino da Matriz que tocava, às 18 horas, a Ave Maria de Gounod/Bach. Nunca ouvi o Torna a Sorrento. Bem, eu me refiro aos anos que vivi lá, de 1950 ao final de 1959. Não sei se foi o mesmo período em que você viveu, pode ter sido antes ou depois. Pode me tirar essa dúvida? Inclusive um dos meus irmãos, que nessa década frequentou o seminário, também me fez a mesma observação.
Grato
Ricardo
Prezado Ricardo,
ResponderExcluirMuito obrigado por suas gentis observações. Você tem razão! Às 18,00 horas o disco da Matriz propagava aos rincões do Campo Grande o som da Ave Maria de Gounod. Logo após, havia a reprodução de músicas variadas do repertório semi-clássico de então. Mudavam de tempos em tempos. Neste período ao qual me refiro, não sei exato se 1951, ou no primeiro semestre de 1957 (no intervalo morei fora de Dores), minha memória me remete às emoções da época. Me foi informado, que, após a Ave Maria, a igreja reproduzia músicas semi-clássicas do período. Assim, infelizmente, não posso dizer-lhe a época precisa, mas lhe digo de coração: essa é a Dores que não me sai do pensamento!
Gostei muito !!!
ResponderExcluirParabéns, muito bom saber como nossa região é ligada por fortes traços de história e cultura! Viva Dores do Indaiá, Viva Pitangui!
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