quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O futuro de uma ilusão






Revendo meu acervo de fotografias eu me deparo, mais uma vez, com as fotos que tomei em minha viagem à União Soviética em 1981. Em novembro deste ano, visitei este grande país, a convite do seu Ministério da Saúde. Ali permaneci por 13 dias. Havia levado comigo dois rolos de filmes Kodak que se esgotaram em Moscou, tal a quantidade de fotos tomadas naquela linda cidade. A beleza das fotos, a boa delimitação de cores, revelando nuances e tons degradê, mesmo passados quase quarenta anos em que foram tomadas, revela a grande qualidade desses produtos do mundo capitalista.

Tendo dificuldades na aquisição de novos filmes para a câmera fotográfica Olympus, de origem japonesa, solicitei a ajuda de minha cicerone, a Srta. Helen Kornilovitch, secretária do diretor da instituição que me acolhera. Com muita dificuldade, consegui adquirir um rolo de filmes em preto e branco em uma loja de Moscou.

Eu já ficara impressionado com o grau de atraso tecnológico em que o país vivia. Enquanto em todo o Ocidente, há quase duas décadas, convivíamos com as calculadoras eletrônicas japonesas que invadiram o mercado mundial a partir do início da década de 1960, na União Soviética eu não vira em lugar algum uma mísera maquininha de calcular. Os vendedores de lojas faziam os cálculos para dar o troco nas compras utilizando-se do velho ábaco. As origens do ábaco remontam às mais antigas civilizações. Na Mesopotâmia, no período entre 2.700 a 2.300 a.C., foram encontradas as primeiras referências acerca do seu uso. Posteriormente, foi aperfeiçoado por romanos e chineses e sua prática chegou quase intacta até nossos dias. É um método que utiliza uma moldura com bastões ou arames paralelos por onde deslizam fichas, bolas ou contas, utilizando-se do sistema decimal por casas (unidades, dezenas, centenas, etc.) em que as principais operações aritméticas são realizadas com facilidade.

Com a prática, o indivíduo torna-se extremamente ágil e rápido no uso do ábaco. Entretanto, com a eletrônica, o uso do ábaco, fora do aprendizado escolar dessas operações matemáticas e o treino cognitivo, não faz sentido. Quando visitei este belo e rico país, de tradições culturais, musicais, literárias e artísticas únicas no mundo, todas as transações comerciais, de transportes, etc., era feita através do velho ábaco. A única exceção, vista por mim, já era a utilização de computadores em centros de pesquisa universitária. Não sei dizer se os computadores já eram utilizados nas atividades bancárias. Mas, sua utilização ampla, geral e quase irrestrita, em todos os locais por onde andei, revela apenas o atraso tecnológico do país, o que se revelou fatal com o desenrolar da Guerra Fria e da guerra tecnológica com os Estados Unidos da América.

Quando parti para Leningrado (atual São Petersburgo) meus filmes Kodak estavam no fim. Quando terminaram, utilizei este rolo de filmes adquirido em Moscou. Qual não foi minha surpresa quando, já no Brasil, revelei esses filmes e me deparei com uma qualidade da película que não tem adjetivos de tão ruim era. As fotos, além de se apresentarem escuras, de poucos contrastes, se deterioraram em poucos anos e, em muitas delas, não se podia distinguir mais nada. Eu as considerava perdidas.

Em 2015, consegui, com um especialista, a digitalização das fotos que tinham sido reveladas como slides. Ficaram um tanto oníricas e surreais. Algumas são até mesmo dignas de participar de campeonatos artísticos de fotografia se tivessem sido feitas propositalmente para esse fim. Mas, não, tratou-se mesmo de baixa qualidade dos produtos químicos e do papel do filme dos rolos de fotografia. Infelizmente, pois documentei encontros importantes com cientistas do laboratório onde Ivan Pavlov havia trabalhado em suas fundamentais descobertas para a fisiologia dos reflexos condicionados. A São Petersburgo da época em que Pavlov trabalhou e tornou-se um ícone da medicina e fisiologia mundiais já era tão bela quanto hoje. Seus laboratórios ocupam grandes espaços próximos ao centro desta belíssima cidade banhada pelo Mar Báltico.

São Petersburgo é uma cidade mais bela do que Moscou. Muitos a consideram uma das mais belas do mundo, rivalizando com Veneza ou Amsterdã, suas concorrentes mais diretas, dada a existência dos inúmeros canais marítimos ou fluviais. Fica no delta do Rio Neva, quando este desemboca no Mar Báltico, na entrada do Golfo da Finlândia. Foi construída pelo Czar Pedro I, o Grande e, oficialmente fundada em 27 de maio de 1703. Entre 1713 e 1918 tornou-se oficialmente a capital do Império Russo. Em sua construção morreram milhares de trabalhadores em decorrência das profundamente insalubres condições do lugar. Pantanoso, lamacento, com clima extremamente úmido, muitos pontos de água salobra, milhares de homens morreram de doenças como gripes, pneumonia, infecções, desnutrição, diarreias, desidratação, exaustão, doenças transmitidas por parasitas e insetos. Os trabalhadores eram tratados a pão e água, suas condições de vida e execução das obras eram extremamente duras e desumanas. Houve revoltas, porém sufocadas com violência. Poucos trabalhadores sobreviveram até a data de sua inauguração. Foi a glória da vida de Pedro, o Grande e a desgraça de milhares de trabalhadores.

A cidade é considerada a metrópole mais ocidentalizada da Rússia, assim como a capital cultural do país. É a cidade mais setentrional do mundo com população acima de um milhão de habitantes. Seu centro histórico e os monumentos foram considerados Patrimônio da Humanidade, pela UNESCO. Seu principal monumento é o museu Hermitage, um dos maiores do mundo, com mais de três milhões de peças, que precisam se revezar para serem expostas em decorrência da falta de espaço suficiente para todas. O Hermitage era o antigo Palácio de Inverno dos czares, bem no centro da cidade, às margens do Rio Neva. Seu aspecto é monumental, construído para demonstrar o poder do Império Russo. Diversos foram seus arquitetos, mas o mais importante foi o italiano Bartolomeo Rastrelli. Seu estilo é conhecido como Barroco Elizabetano. Sua fachada principal tem 250 metros de largura. Tem 1.786 portas, 1.945 janelas, 1.500 quartos e 117 escadarias, rivalizando com o Palácio de Versalhes, em Paris. Durante a I Guerra Mundial, em fevereiro de 1917, este palácio foi o palco dos principais acontecimentos político-militares da Revolução Russa, com a queda do Czar Nicolau II e a subida ao poder do primeiro-ministro Alexander Kerensky. Em outubro (calendário juliano) houve um golpe de estado dentro da Revolução e os bolcheviques tomaram o poder, no dia 7 de novembro, no calendário gregoriano, tendo Vladimir Ilitch Lênin à frente. O regime comunista perdurou por 74 anos, tendo caído em 19 de agosto de 1991, com a subida ao poder de Boris Yeltsin.

Uma das razões da queda do império soviético foi por mim testemunhada: a baixíssima qualidade de sua indústria e o resultado de mais de seis décadas de economia planificada em planos quinquenais que arrasaram a economia e apagaram criatividade de seus cidadãos, bloqueou a livre iniciativa. A coletivização geral da economia foi um desastre, e o engessamento ideológico das mentalidades trouxe a ruína tecnológica, científica e cultural para o país.


Quando visitei este belo e rico país, de tradições culturais, musicais, literárias e artísticas únicas no mundo, pude constatar isso que assinalo. As fotos abaixo são um pequeno exemplo, mais do que eloquente, do que um regime totalitário, corrupto e incompetente, pode fazer para destruir uma cultura e uma sociedade.


O Rio Neva e a bela Leningrado (São Petersburgo). Cidade construída por Pedro o Grande. Era primitivamente região pantanosa e morreram milhares de operários nas obras pelas condições desumanas de trabalho, doenças palustres, inanição e fome.

Rio Neva e, do lado oposto, a Fortaleza de Pedro e Paulo, onde os revolucionários eram aprisionados. Aí também esteve agrilhoado Dostoyevski, após participar de conspiração contra o czar Alexandre I, em meados do século XIX.

Cúpula da Catedral de Santo Isaac, em Leningrado.

Colunatas e Arco do Triunfo na entrada da praça que dá acesso ao Palácio de Inverno.

A praça defronte ao Palácio de Inverno dos czares.

O Palácio de Inverno. Residencia dos czares. O último foi Nicolau II, assassinado com toda a sua família pelos bolcheviques, em Ekaterimburgo, em 1918. Hoje é o Museu Hermitage.

O Palácio de Inverno e seu obelisco, construído com ferros fundidos dos canhões tomados a Napoleão Bonaparte, em 1812.


Estátua equestre de Pedro, o Grande. O czar que construiu São Petersburgo.


O Cruzador Aurora e seu famoso canhão sinalizador da Revolução Bolchevique.


O Cruzador Aurora, com seus canhões apontados para o Palácio de Inverno. Hoje é museu e preservado como era.


O Cruzador Aurora e seu canhão histórico. Este canhão deu o tiro de advertência para os revolucionários tomarem de assalto o Palácio de Inverno, do outro lado do Rio Neva. No palácio estava reunido todo o gabinete governamental do Regime Provisório de Alexandre Kerensky, que queria instaurar uma república democrática na Rússia.


Canhão do Cruzador Aurora, que deu o tiro sinalizando o início do golpe bolchevique, a 25 de outubro, pelo Calendário Juliano, e 7 de novembro, pelo Calendário Gregoriano. A qualidade da foto retrata perfeitamente o título desta postagem: O Crepúsculo de Uma Ilusão.



Com o diretor do Instituto de Fisiologia Ivan Pavlov de Leningrado.

Na sala de trabalho que pertenceu da Ivan Petrovitch Pavlov.

Com o diretor do Instituto de Fisiologia Ivan Pavlov em Leningrado.

Sala de Ivan Pavlov em Leningrado.

Sala de Ivan Pavlov em Leningrado.
Pode-se observar a espessura das paredes
para impedir que os ruídos prejudicassem
as pesquisas com reflexos condicionados
em cães.










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