Baruch Spinoza (1632-1677) |
Spinoza foi o primeiro filósofo a descrever a mente como decorrente do funcionamento do cérebro.
“O corpo não pode determinar que a mente pense; nem a mente determinar que o corpo fique em movimento ou em repouso, ou em qualquer outro estado, pela simples razão de que a decisão da mente e o desejo e a determinação do corpo (...) são uma única coisa”.
(Baruch Spinoza. Ética, Parte II, Proposição XIII).
A família de Spinoza (é comum a
grafia Espinosa em português) é de origem judia castelhana, da cidade de
Spinoza de los Monteros, na região da cordilheira cantábrica, no norte da
Espanha, que fugiu da Inquisição espanhola, estabelecendo-se em Portugal,
quando os Reis Católicos Fernando e Isabel, através do decreto da Alhambra, em
1492, proibiram aos judeus a residência
no país. Portugal ofereceu asilo aos emigrados
judeus, porém, em 1498, o rei português D. Manuel, o Venturoso, pediu a mão da
princesa espanhola em casamento, o que foi concedido desde que Portugal
expulsasse os judeus ou os obrigasse a assumir a fé católica, isto é, que se
tornassem judeus convertidos (cristãos novos ou marranos). Miguel de Spinoza, o
pai de Baruch, nasceu aproximadamente um século depois, na cidadezinha de
Vidigueira, próxima a Beja. Como a perseguição aos judeus se recrudescesse no
período, sua família emigrou-se para Nantes, na França e, em seguida, buscaram
terras mais seguras, e emigraram inicialmente para Roterdã e, posteriormente,
Amsterdã, na Holanda. Na ocasião (final do Século XVI) os Países Baixos haviam
se libertado do jugo espanhol, após sangrentas guerras, e a dinastia da Casa de
Orange (na qual se destacou o Príncipe Maurício de Nassau, o mesmo que tentou a
colonização holandesa de Pernambuco, no Brasil), estava então no poder. Apesar
da disputa pelo poder entre os membros da Casa de Orange, conservadores e
autocráticos, com a burguesia mercantilista e liberal, a Holanda se
estabelecera como um país liberal tanto no sentido religioso, como político e
comercial, estabelecendo fortes alianças com os demais países do norte e centro
europeus. Com isso, ela teve um impulso econômico extraordinário, dando início
à era capitalista moderna, com a ascenção da burguesia comercial e criando as
bases do moderno sistema bancário internacional. Em um país calvinista como a
Holanda, em guerra contra um país católico como a Espanha, os Spinoza acharam
por bem voltar à sua velha crença judaica (que, na verdade, nunca haviam
abandonado em sua intimidade familiar) e o judaísmo foi a religião que o menino
Baruch (Benedito ou Bento, em sua grafia latina) foi educado.
Baruch
Spinoza foi um profundo estudioso da Bíblia, do Talmud e de obras de autores
judeus, como Maimônides, Ben Gherson,
Ibn Ezra, Hasdai Crescas, Ibn Gebirol, Moisés de Córdoba e outros. Estudou também os clássicos
greco-romanos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Demócrito, Epicuro, Lucrécio. Teve também contato estreito com a obra
do herético Giordano
Bruno (este foi queimado
pela Inquisição em 1600, devido às suas teorias de apoio a Copérnico de que a
Terra não era o centro do universo, mas que girava em torno do sol, e que este
era mais uma das milhares de estrelas do universo).
Spinoza
viveu no período conhecido como “Idade de Ouro” da história da Holanda, um
período de grandeza econômica, política e cultural, baseada na expansão
comercial, quando este pequeno país se alçou ao nível de potência mundial, se
ombreando às outras grandes como a Inglaterra, França, Espanha e Portugal
(estas duas já em franco declínio político e econômico). O estilo de vida do
povo holandês, se contrastando com o dos demais povos das grandes potências,
era de simplicidade e respeito entre as classes. Isso permitiu a Spinoza seguir
sua própria filosofia de vida, muito simples, mas sem pobreza ou indigência.
Neste período René Descartes viveu na Holanda por vinte anos. A Idade de Ouro
legou à Humanidade cientistas como o físico Christian Huygens, o matemático
Simon Stevin, os microscopistas Antonie van Leeuwenloek (o inventor do
microscópio) e Jan Swammerdam, o escritor Joost van den Vondel e os pintores De
Vermeer, Ruydael e Rembrandt .
Com
uma formação tão universalista e humanista, foi natural que Spinoza desde cedo
começasse a questionar os cânones de sua religião judaica e a fazê-lo
publicamente, o que muito desagradou a seus familiares e irmãos de fé.
Segundo
Chauí (1997), todos esses elementos de sua formação foram contraditórios, como
também o era o mundo judaico no qual vivia. Havia um entrecruzamento de
tendências o que obrigava os pensadores a encontrar soluções próprias. Muitas
vezes o resultado dessas tendências pessoais não era aceito pela comunidade
judaica. Foi o que ocorreu com Uriel da Costa, que afirmava não existir
beatitude eterna, pois na Bíblia não se fala em imortalidade da alma, e sim em
felicidade temporal. Foi o que bastou para Uriel da Costa ser perseguido por
causa de suas idéias e, após um episódio de extrema humilhação perante a
sinagoga local, no qual teve de se retratar em público e submetido a
flagelação, da Costa, não suportando o desespero, suicidou-se em 1640. Tal
episódio calou fundo em Spinoza, que assistiu a todo o ocorrido quanto tinha
apenas oito anos de idade.
Spinoza
sofreu forte influência do médico Juan del Prado, considerado herege pela
comunidade judaica de Amsterdã. Oróbio de Castro, segundo Chauí (1997), um dos
líderes desta comunidade, dizia de Juan del Prado (e com isto queria também
atingir Spinoza que se tornara conhecido pelas suas veementes constestações às
verdades reveladas da Bíblia ou do Talmud):
... Chegam ao
judaísmo depois de haver estudado durante todo seu período de idolatria algumas
ciências profanas como a lógica, a metafísica e a medicina. Ignoram a lei tanto
quanto os princípios, mas cheios de arrogância e de orgulho estão convencidos
de que a conhecem a fundo e, embora desconheçam o essencial, estão convencidos
de que conhecem muito bem todas as matérias... Esses elementos arrogantes e
orgulhosos negam a verdade das Escrituras e do Deus nelas revelado,
substituindo-o por um Deus-Natureza. Negam a fé, só aceitam o poder natural da
razão e, portanto, negam os milagres. Negam que haja um povo eleito e perguntam
por que Deus não se teria dado a conhecer a todos os homens.
O choque de Spinoza com os princípios do judaísmo foram se agravando a tal
ponto que, antes de ser excomungado pela Sinagoga de Amsterdã, ele renunciou à
sua fé religiosa, em 1656. Sua família aproveitou a situação para deserdá-lo e
afastá-lo dos negócios familiares, que na época não andavam bem. Spinoza não
teve outra saída senão aprender um ofício que lhe valeu até o fim de seus dias
como sobrevivência simples, porém digna: tornou-se polidor de lentes de vidro,
o que fez com tal zêlo e competência, que logo angariou uma fiel clientela que
lhe garantia o sustento.
Logo
Spinoza integrou-se à vida intelectual holandesa, exatamente no período em que
a Holanda vivia o seu século de ouro. Spinoza mergulhou nos estudos do
humanismo clássico, aprendeu latim e um pouco de grego com Franz van den Enden,
ex-jesuíta, médico, filólogo e livreiro e que se metera em política a favor dos
irmãos de Witt, lutou contra a Inglaterra e foi enforcado pelos franceses,
acusado de alta traição. Com ele, Spinoza leu obras de Terêncio, Tácito, Tito
Lívio, Petrônio, Virgílio, Sêneca, César, Salústio, Marcial, Plínio, Ovídio,
Cúrcio, Plauto e Cícero. Entre os gregos leu Diofanto, Aristóteles, Hipócrates,
Epiteto, Luciano, Homero e Euclides. Neste período, Spinoza estuda Descartes,
quando adotou alguns dos princípios do cartesianismo: confiança no poder da
razão, tanto na teoria, quanto na prática, necessidade de elaborar as noções de
método, de verdade, de ser e de ação.
Em 1661, Spinoza buscou um local mais tranqüilo
para morar, onde pudesse meditar e escrever aquilo que já tinha em mente.
Mudou-se para a aldeia de Rijnsburg, próxima a Leyden, onde dividiu uma pequena
casa com o cirurgião Hermann Homam, e ali escreveu "Pequeno tratado sobre
Deus, o homem e sua felicidade" e o seu Tractatus de Intellectus
Emendatione ("Tratado sobre o
melhoramento do Intelecto"). Ele também completou a maior parte da sua
"versão geométrica" da obra de Descartes, Principia Philosophiae com o apêndice Cogitata Metaphysica
("Pensamentos metafísicos") e também a primeira parte de sua
"Ética", a qual dividiu em cinco partes: A respeito de Deus; A
natureza e origem do espírito humano; Natureza e origem das emoções; A
escravidão humana, ou a Força das emoções; e Poder do conhecimento, ou Liberdade
humana. Nessas obras, Spinoza contesta o dualismo cartesiano, e utiliza notas
que havia feito nos debates do círculo de Amsterdã. Em Rijnsburg recebeu a visita,
em 1661, do acadêmico anglo-alemão Heinrich Oldenburg,
que logo seria um dos dois primeiros secretários da Royal Society em Londres.
Em 1662, Spinoza provavelmente completou o seu Tractatus
de intellectus emendatione. A partir de 1663 e até 1670 Spinoza viverá na
pequena aldeia de Voorburg, nas imediações de Haia, e onde seus contactos
políticos serão maiores. Em maio de 1670 Spinoza mudou-se para Haia,
imediatamente depois da publicação do Tratado teológico-político. Vai morar no
bairro mais tranqüilo da cidade, onde viviam então numerosos intelectuais e artistas,
primeiro em casa de uma senhora viuva, van Velen, e depois, em 1671, em casa do
pintor Hendrick van der Spyck, em Paviljoensgracht, onde ficou até sua morte. Neste período, Spinoza completa toda sua
obra.
O novo
estado holandês baseava-se na liberdade burguesa e incentivava a liberdade de
empresa, de consciência, valorizava a atividade econômica e a liberdade
religiosa. O catolicismo, com seus tribunais, sua fiscalização, sua
intolerância, seu autoritarismo insuportável, era um impecilho para o
intercâmbio comercial, daí a Holanda se manter distante dessa opressão. Foi
adotado o calvinismo como religião em sua forma liberal, conhecido como
evangélico ou libertino, oposto ao calvinismo ortodoxo. Havia liberdade
religiosa, supremacia do poder civil sobre a autoridade religiosa, o que
impediu esta última de legislar em assuntos de fé e de moral. Os calvinistas
ortodoxos já eram partidários da dominação do Estado pela Igreja e condenavam o
desenvolvimento econômico como contrário à Bíblia. Eram seus membros pessoas
das classes mais pobres (camponeses, artesãos, marinheiros, operários,
portuários) todos fiéis à Casa de Orange, que estava em franca luta contra os
liberais.
O conflito entre as duas tendências foi inevitável e explodiu em 1648, após
o Tratado da Vestfália, que se seguiu à Guerra dos Trinta Anos. A Holanda havia
participado, ao lado da França, da guerra contra a Espanha. Finda a guerra, foi
celebrado um tratado em separado entre Holanda e Espanha, o que abriu as portas
das colônias espanholas para o comércio holandês. Já a Casa de Orange queria a
continuação da guerra, para manter o sentido de sua existência. Foi firmada a
paz entre as duas correntes e os liberais, apoiados pela burguesia, continuaram
a governar a Holanda. Seu maior representante foi Johannes de Witt, eleito
Grande Pensionário em 1653 até seu assassinato em 1672 (junto com seu irmão),
quando a Casa de Orange retomou o poder. Spinoza era grande amigo dos de Witt e
tentou um protesto espalhando cartazes pela cidade contra tal bárbaro episódio.
Foi contido por amigos e, por prudência, se manteve isolado em sua casa, quando
escreveu a maior parte de suas obras, já totalmente integrado à cultura
holandesa, aí permanendo até sua morte, em 1677.
No dizer de Sir Bertrand Russel (1945), Spinoza é o mais nobre e o mais
simpático dos grandes filósofos. Intelectualmente, alguns o sobrepujaram, mas
eticamente ele é supremo. Como consequência natural, ele foi considerado,
durante sua vida e por um século após sua morte, um homem de terrível falta de
malícia. Durante mais de cem anos, sua obra foi proibida de ser publicada em
vários paises, por ser considerado autor maldito, cujas idéias poderiam
inspirar o ateísmo e a sublevação contra a ordem religiosa e moral. Sua
reabilitação só se deu mais de cem anos após sua morte.
Foi a crítica da superstição que levou Spinoza a escrever a Ética na qual demonstra como Deus é a
causa racional produtora e conservadora de todas as coisas, segundo leis que o
homem pode conhecer plenamente. Spinoza é considerado um filósofo racionalista
absoluto. Descartes e Leibniz, apesar de racionalistas, deixam permanecer
mistérios subjacentes ao conhecimento racional, ao passo que Spinosa procura desfazer a própria noção de mistério
e não apenas os conteúdos misteriosos.
Foi também Spinoza um monista, isto é, contrariamente ao cartesianismo
dualista que afirmava a total
independência da mente e do corpo, e à teoria de Malebranche na qual o cérebro
e a mente se relacionam entre si mas são independentes e só providencialmente
paralelos, para ele mente e corpo têm uma mesma substância, constituem partes
de uma mesma coisa, que é Deus (Durant, 1996). As bases para a moderna
concepção do cérebro e da mente estão em Spinoza e sua concepção do corpo e
espírito.
Para Spinoza, a mente não é material, nem a matéria é mental; muito menos o
processo cerebral é a causa, nem o efeito, do pensamento; tampouco os dois
processos são independentes e paralelos. Durant (1996) cita Spinoza, na Ética, Parte II, Proposição XIII:
Não existem dois
processos, e não existem duas entidades; existe um único processo, ora visto
internamente como pensamento, ora externamente como movimento; existe apenas
uma entidade, ora vista internamente como mente, ora externamente como matéria,
mas na realidade uma inextricável mistura e unidade de ambas. Mente e corpo não
atuam um sobre o outro, por que não são outro, são um só. “O corpo não pode
determinar que a mente pense; nem a mente determinar que o corpo fique em
movimento ou em repouso, ou em qualquer outro estado”, pela simples razão de
que “a decisão da mente e o desejo e a determinação do corpo (...) são uma
única coisa”. E todo o mundo é unificadamente duplo dessa maneira; sempre que
há um processo “material” externo, isso não passa de um lado ou aspecto do
verdadeiro processo, que para uma visão mais plena seria visto como abrangendo
também um processo interno correlativo, por diferente que fosse o grau, com o
processo mental que vemos dentro de nós mesmos. O processo interior e “mental”
combina, a cada estágio, com o processo externo e “material”; “a ordem e a
conexão de idéias não diferem da ordem e conexão das coisas”. “Substância
pensante e substância ampliada são exatamente a mesma coisa, compreendida ora
através deste atributo” ou aspecto, “ora através daquele”. “Certos judeus
parecem ter percebido isso, embora de forma confusa, por que diziam que Deus e
seu intelecto, e as coisas concebidas pelo seu intelecto, eram exatamente a
mesma coisa”. (...) Se “mente” for adotado num sentido amplo de corresponder ao
sistema nervoso em todas as suas ramificações, então toda alteração no “corpo”
será acompanhada por – ou, melhor, formará um todo com – uma alteração
correlativa na “mente”. “Assim como os pensamentos e os processos mentais estão
ligados e arranjados na mente, as modificações do corpo e as modificações das
coisas” que afetam o corpo através de sensações “estão no corpo, arrumadas
segundo a sua ordem”; e “ao corpo, nada pode acontecer que não seja percebido
pela mente” e sentido consciente ou inconscientemente. Assim como a emoção
sentida faz parte de um todo, do qual as alterações nos sistemas circulatório,
respiratório e digestivo constituem a base, uma idéia faz parte, juntamente com
alterações “corporais”, de um complexo processo orgânico; até mesmo as
infinitesimais sutilezas da reflexão matemática têm seu correlato no corpo.
O mundo levou quase trezentos anos para reconhecer em Spinoza o princípio
da moderna filosofia da ciência do cérebro. Mente e cérebro são indivizíveis,
são uma estrutura unitária e foi somente na segunda metade do Século XX, com o
desabrochar das neurociências, é que essa realidade ficou clara o suficiente
para resgatar Spinoza como seu grande filósofo.
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