segunda-feira, 6 de março de 2017

O Colégio São Geraldo em Divinópolis




No início de março de 1956 comecei a estudar em regime de internato no Colégio São Geraldo de Divinópolis, Minas Gerais. Eu morava então com meus pais em Luz, cidade próxima a Divinópolis. Na época, estava na moda as famílias de classe média enviarem seus filhos para estudar em regime de internato em colégios renomados. O Colégio (ou Ginásio) São Geraldo era dirigido pelo francês, naturalizado brasileiro, Martin Cyprien, casado com senhora da sociedade de Divinópolis. Homem culto e fino, poliglota, grande administrador e mestre, apaixonara-se muito tempo antes de eu conhecê-lo pelas terras mineiras. Apesar de não ter orientação religiosa, o colégio seguia a rotina dos demais colégios católicos, dirigidos por padres de algumas congregações, como ocorrera no passado com o Seminário de Mariana e, em meados do século XX, no Caraça, em Diamantina (para moças), em Manhumirim e, no Estado do Rio de Janeiro, em Mendes. Sua reputação era a de um colégio rigoroso, com excelente corpo docente e disciplina militarizada. 

O Colégio São Geraldo foi fundado em 1922, em Oliveira, transferido depois para Pará de Minas em 1930 e, finalmente, para Divinópolis em janeiro de 1942. Seu fundador e primeiro diretor até fins de 1959, foi o professor Martin Cyprien. Passou também a Escola Técnica de Comércio em 1945. Deixou de funcionar definitivamente em 1959.

Três meses antes da minha viagem, meus pais se dedicaram a montar o enxoval para minha estada neste grande educandário. Foi uma enorme relação de roupas como uniforme, pijamas, calças, camisas, blusa de frio, meias, cuecas, toalhas, roupas de cama e todo o arsenal necessário a uma convivência diuturna nesse tipo de instituição. Todo o material escolar também foi junto. Tudo bem acomodado numa grande arca que veio me acompanhando. Todos os alunos tinham suas arcas com suas roupas. Viajamos na boleia de um caminhão saído especialmente de Luz para levar uns 6 ou sete estudantes desta cidade. Eu não completara, então, 12 anos de idade. Quando meu pai se despediu de mim, após entregar-me aos cuidados dos administradores do colégio, quase senti o mundo a desabar-me, pois, pela primeira-vez na vida estava eu sozinho, sem o acompanhamento de meus familiares. Ao abraçar-me, meu pai chorou e o acompanhei nas lágrimas. Um tremendo aperto no peito me sufocava. Durante todo o ano de 1956, quando ali estudei, todos os fins de tarde observava o por do sol sobre os muros dos fundos do colégio. O sol se punha na direção do Oeste de Minas Gerais, exatamente na direção de onde eu viera. Em todos os fins de tarde voltava o sufoco no peito e uma dor no coração. 

Quando recebia correspondência de meus pais em Luz, ou de meus avós paternos em Dores do Indaiá, era uma festa. A maior alegria que tive foi quando recebi um embrulho, enviado por minha avó Virgínia, mãe de meu pai, com alguns de meus doces preferidos: goiabada cascão e queijo curado das fazendas de Dores. Durante algumas semanas me deliciava após o almoço com aquelas iguarias que ficavam guardadas na despensa da cozinha do colégio, devidamente etiquetadas com o nome de seu dono. Todos os estudantes em regime de internato recebiam suas encomendas, em geral doces e demais guloseimas enviadas por suas famílias. Todas armazenadas no mesmo aposento.

Acordávamos bem cedo, por volta de 6,00 horas. Às seis e meia estávamos tomando o café da manhã. às 7,00 horas impreterivelmente começavam as aulas. Estas terminavam por volta de 11,40 horas. Ao meio dia era servido o almoço no grande restaurante. Durante as refeições, o coordenador disciplinar do colégio, Sr. Joaquim, sentado em uma cadeira bem elevada, lia trechos de livros, da Bíblia Sagrada, ou outros textos de interesse pedagógico e cultural. Algumas vezes, eram alunos dos cursos finais do ginasial a ler estes textos. Após intervalo de 1 hora, iniciava-se o período de estudos compulsórios no também imenso salão de estudos que compreendia toda a construção a oeste. O prédio do colégio ocupava todo um quarteirão da cidade. A parte da frente era ocupada pelas salas da diretoria, dos professores, a administração e as salas de aula. No segundo andar os dormitórios abrangiam toda esta ala. O refeitório e imensa cozinha ocupavam grande parte da ala leste do conjunto. Nos fundos, acompanhando o imenso pátio central, um grande muro de mais de quatro metros de altura que, para muitos, lembrava o de uma prisão. Neste pátio ocorriam as aulas de educação física. As aulas de natação, e aprendi a nadar aí, eram dadas no Clube Social de Divinópolis, bem no centro da cidade, duas vezes por semana, no primeiro horário de aulas, isto é, às sete da matina. Divinópolis era então considerada uma cidade muito fria no inverno. Imagine-se nadando numa piscina sem aquecimento nos meses de maio e junho. Foi por desespero e medo do frio que aprendi a nadar, meio que no sufoco, para poder me aquecer rápido com os exercícios dentro d'água. Até hoje é o básico de minha natação. As aulas de natação que tive, décadas após, no Minas Tênis Clube, foram apenas uma consolidação do aprendizado que tive na piscina de Divinópolis.

Imensos corredores circundavam o pátio central onde, nos momentos de lazer sentávamos em grandes bancos para uma conversa amena, contar piadas, trocar livros ou revistas, discutir sobre futebol ou sobre nosso time de preferência, etc. Havia alto-falantes neste amplo local que transmitia noticiários e músicas clássicas e populares do repertório da década de 1940 e 1950. Lembro-me bem que, em outubro de 1956, todos nós estudantes ficamos apavorados com os acontecimentos que se desenrolavam no mundo: em finais de outubro, a invasão do Egito por tropas de Israel, França e Grã-Bretanha, e a invasão soviética à Hungria, no início de novembro. O presidente do Egito, General Gamal Abdel Nasser nacionalizou o Canal de Suez, praticamente isolando o Estado de Israel de sua saída para o Mar Vermelho e Oceano Índico. Como o canal ainda pertencesse à Grã-Bretanha, Israel invadiu o Egito com o apoio da Grã-Bretanha e França. As notícias eram transmitidas todas as tardes e tremíamos nas bases, pois sabíamos que vivíamos em pleno período da Guerra Fria. Nosso grande receio era do envolvimento maciço dos Estados Unidos e União Soviética no que poderia se tornar a III Guerra Mundial. Para nosso alívio, o presidente americano, General Eisenhower pressionou Grã-Bretanha, França e Israel que se retiraram do território egípcio após uma rapidíssima invasão, sob a supervisão da ONU. Os americanos estavam mais preocupados com a invasão soviética na Hungria que ocorreria menos de duas semanas após a guerra Árabe-Israelense.

Apesar de ter sido um período muito difícil em minha vida, dada a distância da família, aprendi muito em suas salas de aula. A biblioteca, muito rica por sinal, ficava próximo à secretaria. Tínhamos livre acesso ao seu acervo e foi ali que vi e li, pela primeira vez, as estórias narradas magistralmente por Agatha Christie e seus personagens incríveis, os detetives Hercule Poirot e Miss Marple, Sir Conan Doyle e seu insuperável Sherlock Holmes, Georges Simenon e seu inesquecível detetive Jules Maigret, Maurice Leblanc e seu inigualável detetive Arsène Lupin. Às quartas-feiras, às 19,00 horas havia sessão cinematográfica quando eram projetadas películas de produção mais barata, do então chamado cinema tipo B de Hollywood. Essas projeções se davam no imenso salão de estudos que o colégio oferecia a seus alunos. Não eram filmes que estavam fazendo sucesso nos cinemas de todo o mundo, mas eram muito interessantes. Dentre estes filmes muitos eram chamados "noir", um tipo de filme policial, em preto-e-branco, de produção não dispendiosa, com temática detetivesca envolvendo crimes misteriosos, carregados de suspense e dúvidas até o fim, fotografia com forte contraste claro-escuro, envolvimento de gângsteres, tráfico de drogas e mulheres, prostituição, a presença constante da mulher fatal (femme fatale). Anos depois eu me tornaria um aficionado pelo cinema noir, pesquisador e colecionador deste gênero cinematográfico.

Aos domingos, após o almoço, que ocorria mais cedo, por volta de 11,30 horas, tínhamos autorização para sair em um passeio pela cidade. Nestas ocasiões, frequentávamos duas sessões cinematográficas durante a tarde: às 14,00 e 16,00 horas. Dava tempo de fazer um lanche, tomar um sorvete, antes de retornarmos ao Colégio. Às 18,00 horas era obrigatório estar em suas dependências. Pude assistir a filmes memoráveis, nos grandes e belos cinemas de Divinópolis, filmes esses que jamais sairiam de minha memória. Algum tempo depois, já não mais estudante do Colégio São Geraldo, montei álbuns com recortes de jornais que reproduziam cartazes de filmes, nos quais eu anotava todos os detalhes técnicos, os atores e diretores dos grandes filmes de minha vida, grande parte deles vistos quando de minha passagem por Divinópolis. Às 20,30 horas, nos recolhíamos aos grandes dormitórios, todos disciplinadamente organizados, colocávamos nossos pijamas, escovávamos os dentes e nos deitávamos para uma merecida noite de repouso e, quem sabe, sonhos com as atrizes dos filmes vistos. Às 21,00 horas as luzes eram apagadas. 

Quando, anos depois, viajando de carona de Belo Horizonte para Dores do Indaiá, na companhia de um primo, passamos por Divinópolis, já que ele tinha negócios na cidade, pedi a ele que passássemos defronte o colégio. Subimos a Rua Goiás de grandes e memoráveis lembranças, com suas lanchonetes e padarias que conhecíamos de cor e salteado e dobramos à esquerda na rua do colégio. Meu coração pulsava de emoção. Desci do carro, pus os pés no passeio que outrora eu tanto pisara, olhei para o prédio de alto a baixo, de leste a oeste e aquela construção que no passado me parecera tão grande, tão monumental, era agora sombrio, de um cinza manchado pela falta de pintura, um tanto abandonado e mal cuidado, agora sob a administração de uma escola estadual e meu coração doeu mais uma vez. Acredito que pela última vez. Aquele grande educandário que formou tantos líderes na história política de Minas Gerais, tantos ilustres profissionais liberais, educadores, professores, juristas, legisladores e técnicos dos mais variados calibres, agora estava relegado a uma insignificância. Como dói ver os nossos valores assim tão destruídos! Como pesa a percepção de que nossa cultura vem sendo sistematicamente destruída e nada nos é dado em compensação! Grande Colégio São Geraldo, a quem devo tanto, não merecia tão triste fim!