segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O Hotel Pequim

Hotel Pequim, na esquiva da Av. Bolshaya-Sadovaya (esq.)
e Brestskaya. Defronte a Praça Mayakovsky e Rua Tverskaya.
Foto: Wikipedia.


São recordações que teimam em não desaparecer. De um tempo em que as ilusões estavam em vias de se dissolver. Quando os sonhos de duas décadas passadas já se mesclavam com a fria realidade e os novos tempos já não escondiam suas verdades. Assim foi quando eu cheguei à União Soviética pouco mais de um ano após o término das Olimpíadas de Moscou. Deparei-me com uma realidade bem diferente daquela de meu imaginário dos tempos de estudante.

Cheguei a Moscou na tarde do dia 17 de novembro de 1981, sob um frio outonal, em voo proveniente de Estocolmo. Desci no aeroporto de Sheremetievo e passei por um protocolo de avaliação extremamente estressante, como já descrito em texto anterior sobre minha viajem à União Soviética. Fui recebido pelo prof. Iuryi Urivaev, do Instituto de Fisiologia Normal P. K. Anokhin, da Universidade de Moscou. Tive uma calorosa recepção após os contratempos já relatados. Com sua habitual amabilidade, o prof. Urivaev levou-me até o estacionamento defronte o aeroporto onde o carro do Instituto nos aguardava. Sob um frio de -5C° dirigimo-nos para o centro de Moscou. A um quilômetro da Praça Vermelha, o carro estacionou diante do Hotel Pequim, uma construção de arquitetura monumental dos tempos de Stalin.


A Av. Bolshaya-Sadovaya é um pequeno trecho de uma larga
avenida circular que compõe um dos anéis que circundam
Moscou. Um modelo de planejamento urbano para desafogar
o trânsito. Foto: Wikipedia.


A Praça Mayakovsky (atual Praça Triunfal) com a estátua do poeta.
À direita, o complexo do Comitê de Arquitetura e Urbanismo,
um órgão político-administrativo da prefeitura de Moscou.
Foto: Wikepedia.


O Hotel Pequim ao entardecer. Foto: Wikipedia.


O Hotel Pequim fora planejado e tivera o início de sua construção em 1939, três anos após os sangrentos expurgos de Stalin, quando a velha cúpula bolchevique, que subira ao poder com a Revolução de 1917, havia sido dizimada após as execuções que se seguiram aos espúrios julgamentos. Após a II Guerra Mundial, com a União Soviética tendo saído como uma das grandes vencedoras, ao lado dos Estados Unidos da América e da Grã-Bretanha, Stalin considerou que Moscou era uma cidade que não dispunha de grandes edifícios nos moldes das grandes capitais ocidentais e isso significava uma humilhação para o país. Julgava, com razão, que a cidade iria receber milhares de turistas por ser a capital de um país vitorioso e precisava mostrar um aspecto de imponência. Em 1946 ordenou que se estabelecessem prêmios para os arquitetos que projetassem grandes edifícios de caráter monumental para revelar a grandeza da União Soviética. Em 1947/48 estes prêmios (Prêmio Stalin) foram concedidos a arquitetos que despontavam nos meios acadêmicos e profissionais soviéticos. Arquitetos mais antigos, mesmo que consagrados, foram ignorados por Stalin que desejava imprimir um aspecto de novidade e de arquitetura “revolucionária”. O mais velho dos arquitetos, de 62 anos, foi Vladimir Gelfreikh. O mais jovem, de 37, foi Mikhail Posokhin. Outros dois importantes profissionais escolhidos foram: Vorobyovy Gory, que projetou o prédio da Universidade Estatal de Moscou, o mais bonito, e Dmitry Chechulin. O próprio Stalin participou na escolha dos locais, que ficou conhecido como “projeto Vysotki” (projeto novo que não lembrava aqueles dos velhos tempos do Comintern).




Mapa da área central de Moscou mostrando suas grandes avenidas radiais e circulares.
Ao centro, a Praça Vermelha. Fonte: Wikipedia.


Em primeiro plano, o Hotel Pequim. Ao fundo, à esquerda,
um dos edifíciosdas "sete irmãs", junto à Av. Bolshaya-Sadovaya.
Foto: Wikipedia.

O conjunto da obra, iniciado em 1947, foi concluído em 1953. Ficaram conhecidas como “as sete irmãs”. Foram sete edifícios monumentais, construídos dentro de uma arquitetura chamada de “classicismo socialista” misturado com elementos góticos, que passou a ser conhecido como “estilo imperial stalinista” e vulgarmente como “os arranha-céus de Stalin”. São eles: Hotel Ucrânia (hoje Hotel Radisson Royal), conjunto residencial de apartamentos Kotelnicheskaya, Edifício da Praça Kudrinskaya, o Hotel Leningradskaya (hoje Hilton de Moscou), o Ministério de Relações Exteriores, edifício principal da Universidade Estatal de Moscou, o Edifício Administrativo Portões Vermelhos. O oitavo edifício planejado (seriam “as oito irmãs”), o Palácio dos Sovietes, um gigante de 495 metros de altura, com uma monumental estátua giratória de Lênin em seu topo, não foi construído.


Hotel Ucrânia (atual Radisson Royal).
Foto: Hannah Chapman.


Hotel Ucrânia (atual Radisson Royal).
Foto: Wikipedia.

Hotel Ucrânia (atual Radisson Royal).
Foto: Wikipedia.

Complexo administrativo "Portões Vermelhos".
Foto: Hannah Chapman.


Universidade Estatal de Moscou Lomonosov.
Foto: Hannah Chapman.


Ministério das Relações Exteriores.
Foto: Hannah Chapman.


Hotel Leningradskaya (atual Hilton, Moscou).
Foto: Hannah Chapman.



Conjunto residencial de apartamentos Kotelnicheskaya.
Foto: Hannah Chapman.


Estádio Lênin, defronte à Universidade Estatal de Moscou.
Sede da abertura e encerramento dos jogos da Olimpíada de Moscou,
de 1980. Foto: Wikipedia.


O Hotel Pequim não fez parte das sete irmãs, mas teve sua construção concluída em 1955, após a morte de Stalin. Tinha o mesmo design arquitetônico dos demais em proporções menores. Seu arquiteto foi Dmitry Chechulin. A apenas um quilômetro do Kremlin,  destinava-se a receber delegações internas de países que compunham a União Soviética (Ucrânia, Bielorússia, Geórgia, Armênia, Chechênia, Casaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Kirguistão, Moldávia, repúblicas bálticas – Letônia, Estônia e Lituânia), bem como das demais repúblicas socialistas do Leste Europeu e do restante do mundo, como Cuba, China, Vietnam, etc.

Fiz meu registro no hotel, a reserva já havia sido feita há meses, e não tive problemas de comunicação na recepção pois ali se falava inglês (meu russo era rudimentar). A Olimpíada de Moscou ocorrera pouco mais de um ano antes (julho de 1980). Toda minha estada na União Soviética foi patrocinada pelo Ministério da Saúde do país, pois eu fora convidado para uma visita a instituições de pesquisa na área dos reflexos condicionados pavlovianos e seus sucessores posteriores, como instituições ligadas à neurocibernética de Piotr K. Anokhin. Foi o Instituto de Fisiologia Normal P. K. Anokhin, na pessoa de seu titular, o prof. Konstantin Sudakov, o meu anfitrião em terras soviéticas. Estava programado também visitas a instituições psiquiátricas, hospitais e centros de ensino e pesquisa. Após meu registro, o prof. Urivaev gentilmente acompanhou-me até meu apartamento no terceiro andar. Antes de se despedir, teve a bondade de mostrar-me como funcionavam a válvula de descarga do banheiro e a ducha do chuveiro, em tudo diferentes em seu funcionamento do que eu conhecia no mundo ocidental. Despedimo-nos fraternamente, como se já nos conhecêssemos há anos, e ele combinou de voltar no dia seguinte às oito horas para buscar-me no hotel, de onde eu seria levado para encontro com os professores do Instituto de Fisiologia em encontro já programado também há meses. Eram aproximadamente dezessete horas, horário de Moscou, de um domingo, quando me vi, pela primeira vez, completamente sozinho neste longínquo mundo, tão diferente de tudo que tinha vivido até então em meu querido Brasil. Senti um frio na espinha.

Colocadas as malas sobre suportes, dei uma olhada mais atenta pelo apartamento. Um grande e amplo aposento com apenas uma cama de solteiro. Elevado pé direito como eu nunca tinha visto em qualquer hotel. Janelas amplas com vista para a Av. Bolchaya-Sadovaya, uma larguíssima avenida arborizada, bem defronte à Sala de Concertos Piotr Ilitch Tchaikovsky, sala de espetáculos renomada em todo o mundo, um verdadeiro templo de cultura e música eruditas. À sua esquerda (à direita para quem olha de dentro do hotel) via o belo prédio do Teatro de Sátira, outra sala de espetáculos conhecida em toda a Europa e América do Norte. Não sabia eu que estava hospedado em um dos locais com mais salas de espetáculos, concertos, teatros, óperas, balés, museus e cinemas, concentrados em poucas centenas de metros quadrados, uma das maiores concentrações de todo o mundo. Algo só comparável com a Times Square em Manhattan ou com a City de Londres. O Balé Bolshoi fica a uns quinhentos metros do Hotel Pequim. Foi melhor eu não saber de tudo isso quando ali cheguei. Acho que se soubesse, eu piraria de vez.



Mapa da área próxima ao Hotel Pequim. Fonte: Wikipedia.


Hotel Pequim. Apartamento duplo, após as reformas
há poucos anos. Foto: Wikipedia.


Hotel Pequim. Banheiro do apartamento duplo,
após as reformas há poucos anos. Foto: Wikipedia.

Ao arrumar minhas coisas, abri a gaveta de uma mesa de madeira que servia como bureau de escritório. Um forte cheiro de charuto cubano exalou imediatamente e observei que dentro havia restos de tabaco de charuto. Provavelmente alguma delegação cubana se hospedara no hotel recentemente e a limpeza dos quartos não deve ter sido muito acurada. Descansado um pouco na cama ampla, apesar de destinar-se a solteiros, tomado um banho relaxante, vestido adequadamente, desci pela escadaria para o hall do hotel, por volta de 18,30 horas, para o jantar. Em cada andar havia um pequeno hall ao lado da escadaria ampla, onde ficava a mesa do gerente daquele andar. Bem ao estilo soviético, sua função era observar tudo, anotar tudo, verificar quem entra e quem sai e, evidentemente, fiscalizar. Meu primeiro susto foi verificar que, à exceção dos funcionários da recepção, ninguém falava inglês no hotel. Novo frio na espinha e certa sudorese, mesmo que a temperatura ambiente no hotel estivesse agradável. Chegando à recepção, o funcionário indicou-me o maître do restaurante. Este, também não falando inglês, vendo meu passaporte, compreendeu minha situação. Pediu-me para aguardar numa poltrona à entrada do restaurante, o que acatei, evidentemente, enquanto encontrava uma vaga para mim, pois o recinto estava lotado.

Passados uns dez minutos nos quais eu olhava embevecido para as paredes, o teto, o piso, tudo num estilo bem vintage, o maître se aproxima e pede que lhe acompanhe. Fi-lo obedientemente, por certo. Passamos por um grupo de mesas, umas com famílias animadas a conversar e rir, outras com grupos de amigos ou colegas de trabalho (ou seriam espiões?) a conversar concentradamente, até que chegamos a uma grande mesa, circular, repleta de cidadãos com feições as mais variadas, uns centro-asiáticos, outros siberianos, outros da região do Cáucaso e, creiam-me, uns até com aparência de russos e me indicou uma cadeira, uma única vaga naquela imensidão de gente. Respeitosamente cumprimentei com o olhar e uma leve inclinação a todos e assentei-me. Sentia-me, um pouco, como Marco Polo no seu primeiro contato com a corte de Kublai Khan.

Não demorou muito, alguns segundos e, do outro lado da mesa, um cidadão com aparência de iraniano (ou turco), vendo meu leve embaraço, dirigiu-se a mim e perguntou-me, em bom e velho russo, de onde eu era proveniente. Desculpando-me por não falar a língua de Pushkin, preocupado em não deixar a impressão de que eu pudesse ser um espião estrangeiro, procurei bem pausada e musicalmente dizer algumas palavras nesta bela língua eslava, uma coisa assim, transliterada, evidentemente: “Izvinite miniê, ia ne gavariú pá russki. Ia brasialianetz”. Foi a conta. Ao ouvir o som “brasília” todos se animaram ao perceber que eu vinha da terra do sol, das praias, dos biquínis, das belas mulheres e, por que não?, do futebol! Foi uma festa, a mesa tornou-se imediatamente uma babel linguística, com gente falando duas ou três línguas em sucessão infindável. Uns conversavam em russo, outros em cazaque, outros em uzbeque, outros em turcomenistão e outras línguas menos votadas. Imediatamente me colocaram a par da regra do jogo: nos intervalos da conversa, a cada três minutos, alguém se levantava, fazia uma breve saudação ao visitante, bebia de uma tragada só um cálice de vodka (que era rapidamente recompletado por ele ou outro comensal) e a roda prosseguia. Outro susto: a cada rodada eu, como visitante, tinha que responder como agradecimento à homenagem, saudando a todos e, era obrigatório também virar o bendito cálice de vodka de uma talagada só. Menos de meia hora depois eu me sentia como numa reunião de colegas de faculdade.

Outro susto: o cardápio que me foi oferecido pelo maître tinha duas páginas, uma escrita em russo, outra em chinês, já que o hotel se chama Pequim exatamente por que Stalin queria homenagear as delegações chinesas, então muito cotadas no universo marxista-leninista-stalinista dos anos 1940. Fiquei sem saber o que escolher, mas procurei não demonstrar insegurança. Depois de observar atentamente os preços, em rublos, moeda sobre a qual na ocasião eu tinha alguma noção de valor comparativamente ao dólar americano, pedi o que me pareceu o mais barato (eu não sabia que até as refeições eram por conta dos meus anfitriões). Serviram-me uma sopa consistente, composta de carne cuja procedência e de que tipo de animal jamais saberei, alguma coisa semelhante a uma massa e, esses consegui identificar, brotos de bambu. Como se servia um bom vinho tinto da Geórgia (são excelentes e nada ficam a dever aos ocidentais), achei tudo uma delícia.

A conversa ficou cada vez mais animada. Muitos se dirigiram a mim num inglês macarrônico, mas era nítido o seu esforço em falar o melhor que podiam a língua de Shakespeare para que não soasse como um grunhido de urso siberiano. Fui muito indagado sobre as belezas da Amazônia, sobre as borboletas, ah! as borboletas da Amazônia!, as florestas tropicais, o Rio de Janeiro e, como não podia deixar de ser, sobre Pelé! Este nosso patrício exercia, e ainda exerce, sobre o imaginário do cidadão comum daquelas plagas um fascínio quase sobrenatural. Ninguém ali naquele grupo assistira ao jogo histórico entre a seleção brasileira de futebol e a seleção soviética, em 1963, no Estádio Lênin, bem defronte a um dos prédios das “sete irmãs”, da Universidade Estatal de Moscou, mas todos sabiam de cor e salteado todos os lances daquela memorável partida. A seleção brasileira foi vitoriosa, com o placar de 3 X 0, três gols de Pelé. Isso garantiu, entre os soviéticos, a sua majestade, o cidadão brasileiro Edson Arantes do Nascimento, o título de maior atleta de todos os tempos e até hoje ali ele é um mito, como o da Atlântida. Senti-me grandemente envaidecido ao poder dizer que eu vira Pelé, em carne e osso, jogando no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, na década de 1960. Todos me olhavam atentamente, de olhos e bocas bem abertos, quase que não acreditando naquele gringo. Tenho certeza, consegui para sempre amigos naquela noite, apesar de, 36 anos depois nunca mais ter visto ou ouvido falar de nenhum deles. Coisas da vida.

Tive que falar também sobre as pedras preciosas e semipreciosas de Minas Gerais, suas tonalidades, suas formas, como eram extraídas, etc. Eu estava então sabendo alguma coisa sobre mineralogia já que eu havia levado algumas dessas pedras mineiras para presentear professores que me recebiam. Fui indagado sobre Copacabana, as cariocas e coisas como tal. Este fascínio brasileiro é lenda há muito tempo. Hoje, acredito, virou piada de mau gosto mundo afora.

Ali pelas 21,00 horas, terminado o longo e lauto jantar, feitas as devidas amizades, nos despedimos como amigos de longa data. Com muitos votos de felicidades e sucesso nesta empreitada que eu começava na antiga terra dos czares. Até hoje penso no que eles imaginaram a meu respeito já que turista estrangeiro não entrava sozinho naquele país da Cortina de Ferro, então o mais fechado do mundo. Só em grupo e tutelado por guias soviéticos, em geral agentes de espionagem. Sozinho, só podia ser agente secreto em terras estrangeiras de Leonid Brejhnev (o então czar vermelho) ou, o que seria pior, um agente da CIA. De qualquer forma, a amizade durou para sempre, enquanto durou o encontro. Uma experiência inesquecível.

Como ainda fosse cedo para voltar para meu quarto e não estivesse longe da Praça Vermelha, minha curiosidade falou mais alto. Embora a temperatura lá fora possivelmente tivesse caído mais, não me intimidei. Subi ao quarto, vesti meu capote de pele de alce, que eu ganhara de presente de amigos que me hospedaram em Estocolmo, coloquei a chapka (chapéu de pele de coelho com dois grandes tapa-orelhas de cada lado), vesti meu par de luvas de lã, coloquei o cachecol bem ajustado, desci novamente, deixei a chave na recepção, e invadi a praça defronte ao Hotel Pequim. Foi um espetáculo indescritível. Uma praça enorme no cruzamento da Av. Bolchaya-Sadovaya com a Rua Tverskaya, então chamada Praça Mayakovski, em homenagem ao grande poeta russo que suicidara-se em 1930. Mayakovski fora um poeta futurista, que recebera grande influência ocidental e que, por sua vez, influenciou todo o movimento modernista e, posteriormente, concretista na poesia, aí incluindo o Brasil. Suicidou-se por que, não suportando mais os rumos perigosos e opressivos que o regime stalinista vinha impondo ao povo russo, não aceitando o patrulhamento ideológico do Partido Comunista, não aceitando a doutrinação para abandonar seu movimento vanguardista para aderir ao que, posteriormente, ficou conhecido como “realismo socialista”, caiu em profunda depressão, da qual não mais saiu. A propósito, a praça hoje chama-se “Triunfal”.

O efeito da vodka rapidamente passou na medida em que eu andava por aquele ambiente de pura magia e um frio congelante. Fartamente iluminada, com as lâmpadas das fachadas das duas salas de espetáculos do lado contrário da praça numa feérica profusão de cores, eu quase não sentia frio algum. Do lado oposto do cruzamento da Praça Mayakovski com Rua Tverskaya fica uma das maiores estações do metrô de Moscou, a Mayakovski. Decidi-me por caminhar. Perguntei a um guarda que estava postado nesta praça: “Tovaritch, eta Kremlin nalieva ili naprava?” (“Camarada, o Kremlin fica para a direita ou para a esquerda?”). Para a direita, respondeu-me. Agradeci-lhe: “Spassiba, pajaluista!”


Estátua em homenagem a Vladimir Mayakovsky
(1893-1930). Foto: Alamy Stock.


Tomei da Rua Tverskaya e segui valentemente adiante. O vento congelante soprava em meu rosto, mas a vodka ajudou-me a enfrentar esse tremendo desafio. Numa terra estranha, de um povo com uma belíssima língua, porém ininteligível, a exceção de pouquíssimas palavras, com vinte centímetros de neve nos meios-fios das ruas, eu sabia que todo cuidado era pouco. Quase não vi guardas, mas sabia que os havia. Como nos filmes de espionagem, vez ou outra me imaginava sendo abordado por dois ou mais agentes da KGB, cuja sede da Rua Lubianka ficava colada à Praça Vermelha, portanto a menos de um quilômetro de onde eu me encontrava. Mas, por fim, predominava o bem na luta contra a distorção cognitiva. Afinal, eu nada devia a ninguém, não fazia nada de errado, eu amava aquela cultura, o povo, sua literatura, sua ciência, sua arte, sua pintura. Como um ex-militante marxista eu não tinha do que me arrepender. Afinal, até cidadãos russos acima de qualquer suspeita já haviam publicado tantas obras denunciando os crimes de Stalin, os Gulags, os genocídios contra os ucranianos e outros povos, os julgamentos espúrios e mentirosos. Por ali já haviam passado os Soljhenitzin, os Pasternak, os Sakharov e tantos outros. Não havia sido em vão. Em breve, apenas dentro de oito anos (1989) aquele grande e belo país iria mudar. Como mudou!




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Rua Tverskaya, Moscou. Foto: Wikipedia.

Rua Tverskaya, número 6, Moscou. Edifício de 1940,
projetado por Arkady Mordvinov, para um centro comercial.
Foto: Wikipedia.

Rua Tverskaya no século XIX. Foto: Wikipedia.


A Rua Tverskaya sempre foi um grande centro comercial. Foi retratada por Alexander Pushkin, o maior poeta da língua russa, no século XIX, em alguns de seus poemas. Na época, ela contava com cinco igrejas ortodoxas. No período stalinista, com o objetivo de modernizar a cidade, a rua foi alargada, suas igrejas derrubadas e construídos prédios mais modernos (arquitetura das décadas de 1930 e 1940), incluindo o do diário soviético Izvestia.

Pensando em muitas coisas e sabendo que não poderia ficar parado em função do frio congelante, continuei minha jornada. Passei por lojas belíssimas, com casados de peles, sobretudos, sapatos, chapéus, luvas e todo tipo de vestimentas e utensílios para aliviar aquele frio siberiano, cinema, restaurantes (a esta hora da noite já fechados). Atravessei com todo o cuidado as ruas Staropimenovskyi, Mamonovskyi, Palashevskyi, Bolchaya-Bronnaya, o Bulevar Tverskoy, a estação de metrô Pushkin, as ruas Bolshoi-Gnezdnikovskyi, Maliyi Gnezdnikovskyi, Leontievskyi, Voznezenskyi, Bryusov, Gazetnyi, Nikitskyi, duas ruelas cujos nomes não constam no mapa, até chegar na esquina da rua Mokhovaya. Na esquina com esta última, o Hotel Nacional, de mais de dois séculos, uma referência de luxo já na era czarista, com seu entre-sai de turistas milionários de todo o mundo.




Rua Tverskaya quase esquina com Rua Mokhovaya.
Ao fundo, as muralhas do Kremlin.
Foto: Wikipedia.

Virada a esquina, eis que me deparo com a Praça Vermelha. Um esplendor de luzes, de estrelas vermelhas no alto das torres medievais, a imensa praça com seu piso de pedras maiores do que os nossos paralelepípedos, com seu maior ícone: a Catedral de São Basílio. Distingui, logo depois, a Torre Troitskaya (da Trindade), com seu belíssimo sino. Ouvi as badaladas marcando as 21,30 horas. Me extasiei naquele mergulho no tempo, na história, nas recordações e memórias de minha juventude, quando aquela praça representava o supra-sumo de meus ideais e de tantos outros que sonhavam como eu. Fiquei como que paralisado não pelo frio, pois já não o sentia naquele instante mágico, mas por uma cena que mais parecia uma miragem. Algo que eu nunca pensei que fosse presenciar.



Praça Vermelha. À esquerda, as muralhas do Kremlin.
À direita, o Museu de História do Estado.
Foto: Wikipedia.

Praça Vermelha: à esquerda, a Catedral de São Basílio.
À direita: Torre Troitskaya e seu relógio cujo som do
carrilhão passou a ser conhecido mundialmente pelas ondas
da Rádio de Moscou, a partir da década de 1950.
Foto: Wikipedia.

Praça Vermelha sob o gelo do inverno. Foto: Wikipedia.

Os muros do Kremlin. À esquerda, a Torre Troitskaya e o mausoléu
de Lênin. Ao fundo, o edifício do antigo Senado. Foto: Wikipedia.

Praça Vermelha e o Kremlin. À esquerda, as muralhas do Kremlin
e o prédio do antigo Senado. Defronte às muralhas, o mausoléu
de Lênin. À direita, o Museu de História do Estado.
Foto: Wikipedia.

Praça Vermelha. À esquerda, a Torre Troitskaya.
À direita, a Catedral de São Basílio. Ao fundo, o centro comercial GUM.
Foto: Wikipedia.

Neste momento distingui defronte a torre e os muros da fortaleza do Kremlin o mausoléu de Lênin. Aí então caí na realidade. Mirei por alguns minutos mais aquele monumento que divinizava um ser humano. Pensei com meus botões: a política transformada em religião só levou morte e destruição para a Humanidade. 

Ainda sob o efeito deste impacto, abalado e, ao mesmo tempo, maravilhado, com o muito do que vira, dei meia volta e empreendi a marcha-a-ré. O retorno ao Hotel Pequim foi rápido, como fora rápida a miragem que tivera. Um momento que se firmara indelevelmente em minha história pessoal.





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