sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Boris Schnaiderman - Notas sobre um grande tradutor

Boris Schnaiderman (1917-2016)


Ler Dostoievsky foi determinante na escolha de minha carreira. Entre os 16 e 17 anos, li quase toda sua obra, em religiosas retiradas semanais dos livros na Biblioteca Pública de Minas Gerais, então situada ao lado da atual Estação Rodoviária de Belo Horizonte. Comecei com "Crime e Castigo", em tradução do francês feita por Rosário Fusco, em 1949. 

Nessa época, eram comuns as traduções de autores russos do francês pela carência de tradutores que pudessem fazê-lo diretamente do russo e por que se considerava que ao traduzir do russo para o francês, o texto ficava mais "elegante", já que o francês era considerada língua chique. Quando Boris Schnaiderman começou a traduzir diretamente do russo, em 1944, todos viram que o texto era muito superior a qualquer outra versão traduzida de outra língua.

Boris Schnaiderman foi o primeiro a traduzir as grandes obras russas diretamente do russo; antes dele, traduções indiretas (principalmente através do francês), que descaracterizavam o conteúdo original, eram bastante comuns. Após a leitura de "O Idiota" e, principalmente, "Os Irmãos Karamazov", meu destino estava selado.




Boris Schnaiderman

Vejamos quem foi Boris Schnaiderman.



Boris Solomonovitch Schnaiderman (em russo e em ucraniano, Борис Соломонович Шнайдерман e, em hebraico, בוריס שְׁלֹמֹהביץ' שניידרמן) é um tradutor, escritor e ensaísta ucraniano radicado desde 1925, quando criança, no Brasil.


Nasceu em Uman, na Ucrânia, em 1917 (ano da Revolução Russa), mudou-se depois para Odessa, onde viveu até os oito anos quando veio para o Brasil. Seu pai era comerciante e não se adaptou ao regime comunista. Como tinha um irmão que já estava em São Paulo, conseguiu emigrar com sua família.


Boris presenciou as filmagens de algumas cenas clássicas da escadaria de Odessa (sua casa ficava defronte a mesma) do antológico filme "O Encouraçado Potemkin", de Sergei Eisenstein, sem saber do que se tratava. Só veio a descobrir que foi testemunha de um evento histórico, quando seu pai o levou ao cinema em São Paulo e assistiu àquelas cenas memoráveis hoje indelevelmente marcadas na História do Cinema.





Em 1940, formou-se em Agronomia. Em 1941, após naturalizar-se brasileiro, alistou-se na Força Expedicionária Brasileira (FEB), e lutou como pracinha em solo italiano, durante a II Guerra Mundial. Esta experiência fê-lo escrever o aclamado romance "Guerra em Surdina".


Em 1960, foi o primeiro professor do curso de letras russas na Universidade de São Paulo, apesar de não ser formado em letras. Traduziu os grandes escritores russos, como Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, Máximo Gorki, Isaac Babel, Boris Pasternak e poetas como Alexandre S. Pushkin e Vladimir Maiakovski.


Na década de 1960, a cultura russa era vista no período da ditadura militar no Brasil, com bastante desconfiança. Por consequência, autores russos, tradutores, ou pessoas que se interessassem pela cultura russa, também despertavam desconfianças no meio político-militar. Como Schnaiderman tivesse dois passaportes, o brasileiro e o soviético, já que fizera diversas viagens à União Soviética para contatos culturais, e também por ter, àquela época, convicções comunistas, teve conflitos com a ditadura e chegou a ser preso em sala de aula.


Com a perestroika e a glasnost, na era Gorbatchev, esteve naquele país mais vezes. Após a queda do regime comunista, teve contato direto com histórias e arquivos, até então secretos, que relatavam a realidade das perseguições a escritores, literatos, artistas, músicos, cineastas, cientistas, médicos, psicólogos e toda espécie manifestações culturais, durante os regimes de Lênin e Stálin. 


Em 1997, escreveu "Os Escombros e o Mito - A Cultura e o Fim da União Soviética", um relato fiel, com algumas pitadas de humor e inteligência, daquela era de opressão e desastre da cultura russa. Este livro tem sido aclamado como uma das mais detalhadas e importantes obras sobre aquele negro período.







Ao final da década de 1960, aproximou-se dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, tendo feito inúmeras incursões pelo modernismo e concretismo. Em 1983, Schnaiderman recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura. Em 2003, recebeu o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras. Em 2007, foi agraciado pelo governo da Rússia com a Medalha Pushkin, em reconhecimento por sua contribuição na divulgação da cultura russa no exterior. Continua, aos 98 anos, em plena atividade intelectual, fazendo novas traduções, revendo antigas, escrevendo textos sobre diversas áreas da literatura, além de ser continuamente procurado para fazer palestras, conferências e para entrevistas. 


Morava com sua esposa em seu apartamento-biblioteca no bairro Higienópolis, em São Paulo até o seu passamento, em maio de 2016. Quase cem anos de um trabalho ingente e magnífico.

Vejamos o que diz o blogueiro Luciano R.M. sobre Schnaideraman:


"Os escombros e o mito – A cultura e o fim da União Soviética (Boris Schneiderman)"


Luciano R. M.
Dublê de médico, projeto de tradutor, polonista e iidichista.


"Existem alguns espaços – tanto geográficos quanto temporais – que o senso comum considera como sendo eras negras, vazias de qualquer cultura que tenha algum valor, seja este artístico, científico ou moral. Deixemos de lado a discussão (importantíssima, mas que não cabe aqui nesse momento) sobre os perigos de se definir juízos sobre o ‘valor’ de qualquer objeto cultural, e falemos sobre a falácia que tais afirmações são.


Já é mais ou menos sabido que, de ‘Idade das Trevas’ a Idade Média não tinha nada: já dizia Edward Grant que ‘se pensamentos racionais revolucionários foram expressos no século XVIII, foi apenas porque a idade média consolidou o uso da razão como uma das mais importantes atividades humanas’. Isso para não atacar, uma a uma, as realizações em diversas áreas, indo desde a revolução agrícola de Jethro Tull até A Divina Comédia, de Alighieri.


Do mesmo modo, é de se supor que os anos da Cortina de Ferro, em que a URSS e seus países alinhados no leste europeu viveram sob a rígida direção do Partido Comunista, tenha sido um período mais criativo do que o senso comum costuma pensar. Ainda durante a Guerra Fria, muitos escritores, pintores, cineastas e cientistas soviéticos ficaram famosos no ocidente. Mas tratavam-se, via de regra, ou de exilados ou de informações que nos chegavam truncadas, adulteradas.


Em Os Escombros e o Mito – A cultura e o fim da União Soviética o acadêmico Boris Schnaiderman – judeu russo de origem ucraniana, mas que reside no Brasil desde a juventude – embrenha-se na poeira da queda do poderoso império criado por Lenin, Stálin e colegas para tentar descobrir o que perdemos.
Ele admite que consegue muito pouco: é informação demais, em áreas demais e, muitas vezes, é doloroso demais reconstruir a história de perseguições, censura e terror que os intelectuais daquele gigantesco e contraditório país viveram.


São trinta capítulos em que Schnaiderman, misturando erudição e bom humor, faz o máximo para abraçar todo o conhecimento que puder e trazê-lo ao público brasileiro: fala muito sobre literatura, é verdade, mas não deixa de lado o cinema, a música (falando tanto sobre música erudita quanto sobre rock), as artes visuais, o teatro, a ciência e nem mesmo o meio ambiente. Lança alguns olhares, ainda, sobre as revistas e os jornais – e as rápidas e surpreendentes transformações que estes sofreram com o renascimento de uma Rússia não-soviética.


É um livro esmagador, e é aconselhável que o leitor esteja bem equipado. Um bloco de anotações, uma caneta e um computador podem ser aliados excelentes – se o livro trata sobre um período em que a informação era controlada de maneira extremada, em tempos em que ela circula de modo tão livre como hoje em dia a ob
ra pode funcionar como uma gigantesca lista comentada de obras e filmes a serem pesquisados e apreciados."


http://blog.estantevirtual.com.br/2016/05/19/morre-boris-schnaiderman-aos-99-anos/

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