Teatro Bolshoi. Foto: Wikipedia. |
Ao
revisitar os grandes eventos de minha vida não posso deixar de assinalar as
memoráveis noites que testemunhei em terras russas. Não sou Sheherazade nem
estou a relatar os Contos das Mil e Uma Noites, mas posso assegurar que foram
noites inesquecíveis que me embalam a memória de tempos que não voltam mais.
Comecemos pela primeira noite. Ao final da tarde do dia 20 de novembro de 1981
passei por uma das mais emocionantes experiências de minha vida: assistir a um
espetáculo no Balé Bolshoi em Moscou, o grande ícone do balé mundial.
Acompanhado pela Srta. Elena Kornilovitch, secretária do Prof. Konstantin
Sudakov do Instituto de Fisiologia Normal P. K. Anokhin da Universidade de
Moscou, que me acolhia naquele belo país, assistimos
ao balé “Júlio César”, baseado na peça
homônima de William Shakespeare, de autoria do compositor russo G. Gendieli,
não conhecido do público brasileiro. As entradas haviam sido adquiridas
meses antes em função da elevada demanda do público russo para este tipo de espetáculo.
Dedicatória da Srta. Elen (traduzido para o inglês como Helen)
no alto, à direita do prospecto.
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Fui transportado do Hotel Pequim, onde me
hospedava, até o Bolshoi pelo veículo do Instituto, uma pequena distância de
menos de um quilômetro. O teatro fica no centro da Praça do Teatro, maravilhosa
e feericamente iluminado, com amplo e belo jardim do lado, a quatro quarteirões
da Rua Tverskaya, famosa via pública, onde, na esquina com a Av. Bolshaya Sadovaya,
fica o Hotel Pequim. Uma pequena multidão já estava entrando para o espetáculo
cujo início se dava impreterivelmente por volta das 19,00 horas. Todos
impecavelmente vestidos naquele frio moscovita quase invernal. Uma elegância
digna dos melhores astros do cinema internacional.
Mapa de Moscou com a localização do Teatro
Bolshoi, a menos de um quilômetro do Kremlin.
Fonte: Google Maps. |
Uma fachada monumental no estilo neo-clássico
com amplas colunas gregas e uma escadaria imponente dão entrada para um grande hall
cercado por diversas colunas de mármore e um teto com colunas horizontais que
se entrecruzam, forradas por material que lembra o gesso e magnificamente
decoradas em alto-relevo, nos mínimos detalhes, em tons claros. Sobre a fachada
principal assenta-se uma imensa quadriga (carro de combate) greco-romana, conduzida
por uma figura mitológica compondo um espetacular conjunto em bronze. Este hall
dá acesso, através de uma escada de apenas seis degraus ao amplo salão
principal em seu primeiro nível.
Lobby do nível superior onde, nos intervalos,
são servidas bebidas e salgados.
Um foyer para uma conversa amena. Foto: Wikipedia.
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O amplo palco do Teatro Bolshoi. Ao centro, as
cadeiras
do primeiro pavimento. Nas laterais os balcões
e camarotes.
Este salão tem altura correspondente a um
prédio de seis andares.
Foto: Wikipedia.
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Acomodei-me na parte central da plateia, no
primeiro pavimento, a poucos metros do palco, em posição privilegiada. Senti-me
como se estivesse nas nuvens. Tive que conter a emoção o tempo todo. Ao meu
lado estava uma importante autoridade das Forças Armadas da URSS, um alto
oficial da Marinha com sua esposa, com quem, evidentemente, trocamos
cumprimentos formais.
O
Teatro Bolshoi foi fundado em 1776 pelo Príncipe Pyotr Vasilyevich Ouroussov e
Michael Maddox, um empresário inglês que também atuava na área de espetáculos e
teatros. Seus proprietários adquiriram o Teatro Petrovka, em 1780, iniciando
atividades, com fins privados, de peças de teatro e óperas. Sofreu dois
incêndios, incluindo o ocorrido durante a invasão napoleônica de Moscou, em
1812. O atual local do prédio, na Rua Petrovski, ao lado da Praça do Teatro,
foi construído entre 1821 e 1824, projetado pelo arquiteto Andrei Mikhailov,
dando início às suas atividades com o nome de Teatro Bolshoi Petrovski. A
palavra Bolshoi significa “grande”. Sua primeira peça foi o balé “Cinderela” do
espanhol Fernando Sór. Passou, em seguida, a apresentar apenas peças de autores
russos. Somente em 1840 o teatro se abriu para autores estrangeiros.
O teatro passou por diversas reformas na
segunda metade do século XIX e também durante a era soviética. Neste último
período foram feitas alterações que prejudicaram a qualidade de sua acústica.
Em anos recentes, novas reformas restauraram sua acústica primitiva.
Há
algum tempo eu procurava acompanhar, pelos jornais ou noticiários de televisão,
a atuação do Balé Bolshoi, uma referência mundial e, para muitos, considerado o
maior corpo de balé do mundo. Na década de 1970, já
com visíveis dificuldades econômicas, o regime soviético permitiu que o Bolshoi
viajasse pelo mundo revelando suas estrelas e astros. Episódios como os da fuga
e exílio de grandes bailarinos como Rudolf Nureyev, Natalia Makarova e Mikhail
Barishnikov ainda repercutiam entre o público russo e ocidental.
A principal estrela do Bolshoi, a partir da
década de 1960, foi Maya Plisetskaya. Tive a honra e a suprema alegria de vê-la
no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, em 1979, com o Bolshoi, se
apresentando no balé "O Lago dos Cisnes", de Pyotr Ilitch Tchaikovsky.
Então, a “prima ballerina assoluta” tinha 54 anos. Fiquei sem fôlego e atônito
com o que vi. Infelizmente, a diva se machucou no tornozelo aos 10 minutos de
apresentação e teve que se retirar do palco. Foi ovacionada delirantemente pelo
público que lotava aquela casa de espetáculos. As recordações daqueles momentos
continuarão comigo para sempre.
No
dia 2 de maio de 2015, em Munique, o mundo perdeu a "prima ballerina
assoluta", a divina Maya Mikhailovna Plisestkaya, aos 89 anos. De origem
judaica, vinda de uma família de expoentes do balé e do teatro, estrela suprema
do Teatro Bolshoi, de Moscou, Maya dominou a cena do balé mundial na segunda
metade do século XX, como anteriormente o fizeram suas compatriotas Anna
Pavlova, no início do século XX, e Galina Ulanova, a quem sucedeu no Bolshoi, a
partir da década de 1940 até a de 1990. Ela fora um ser etéreo, cercada de mitos e um ícone na União Soviética,
posteriormente do mundo. Quando jovem foi muito cerceada quanto à liberdade de
se apresentar no exterior. Após atingir o estrelato, quando se tornou digna dos
deuses e deusas do Olimpo, o governo soviético a designou como uma espécie de
embaixadora itinerante da cultura russa mundo afora. Morou na Espanha entre
1987 e 1990, obtendo a cidadania espanhola. Mudou-se para Munique, onde também
obteve a cidadania alemã, e ali viveu com seu esposo Rodion Schchedrin,
aclamado compositor russo, até seus últimos momentos.
Vejam abaixo algumas cenas da diva em ação:
Sua performance em Bolero, de Ravel, na coreografia de Maurice Béjart, tornou-se uma de suas pièces de résistance em todo o mundo e que jamais será esquecida. Vejam abaixo:
No Grande
Palácio dos Congressos no Kremlin
Outra noite esplendorosa em Moscou foi quando,
ciceroneado pelo Prof. Iuryi Urivaev, do Instituto de Fisiologia Normal, fui
assistir ao balé “Natal”, ao fim da tarde e início da noite de 23 de novembro
de 1981. Espetáculo do Balé Clássico de Moscou. Na foto abaixo vê-se o
prospecto fornecido aos espectadores quando da chegada ao teatro.
Capa do prospecto do balé. Na foto, o Grande
Palácio dos Congressos e, à direita, a Torre Spasskaya do Kremlim. |
O Grande Palácio dos Congressos, atualmente
rebatizado de Palácio Estatal do Kremlin, foi projetado pelo grupo do arquiteto
Mikhail Posokhin, em 1959, ganhador do Prêmio Lênin, em 1960, em decorrência
deste trabalho. Foi encomendado pelo Primeiro Ministro e Secretário Geral do
Partido Comunista da URSS, Nikita Krustchev, para sediar os grandes eventos e
congressos do partido. Desde então, até o fim da União Soviética, em 1991, este
local foi o epicentro de todos os grandes acontecimentos políticos do regime,
notadamente os congressos durante o período da Guerra Fria.
Grande
Palácio dos Congressos, no Kremlin.
À
esquerda, a Catedral e Torre do Czar Ivan, o Grande.
Foto:
Wikipedia.
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Grande Palácio dos Congressos, no
Kremlin.
À direita, a Torre Spasskaya. Foto:
Wikipedia.
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XXVII Congresso do Partido Comunista da URSS
no Grande Palácio dos Congressos, 1986.
Foto: Getty Images.
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Após
a queda do regime soviético este grande e imponente edifício tornou-se a sede
do Balé do Kremlin. A apresentação desta peça de balé não me impressionou como ocorrera
com o Bolshoi. Entretanto, dadas as circunstâncias do local, onde ocorriam
eventos políticos que as televisões de todo o mundo transmitiam via satélite
nas décadas de 1970 e 1980, fiquei profundamente impressionado com a imensidão
do espaço e suas proporções monumentais. Acontecimentos típicos de um regime
totalitário, mas que, no momento em que eu visitava a sede do império soviético
em decadência, não tiveram o impacto que poderiam ter tido em mim umas duas
décadas antes.
O Conjunto de
Balé de Leningrado
No dia 26 de novembro de 1981, já na cidade de
Leningrado (atual São Petersburgo), tive a honra e o imenso prazer de protagonizar
mais uma noite de sonhos. Assim como ocorrera em Moscou, meus anfitriões
moscovitas haviam adquirido ingressos para outro espetáculo de balé. Desta vez
no Teatro Outubro, onde se apresentava o Conjunto de Balé de Leningrado. A peça
era “O Idiota”, do consagrado diretor e coreógrafo Boris Eifman, desta
belíssima cidade banhada pelo Mar Báltico. Uma peça baseada no romance homônimo
do gênio Dostoyevski, que tanta importância tivera na escolha de minha
profissão. As temperaturas em Leningrado estavam um pouco mais cálidas que em
Moscou, em função das mornas águas trazidas pela Corrente do Golfo, que
atravessam o Atlântico Norte, passam pelo norte da Grã-Bretanha, atravessam o
Mar do Norte e penetram no Mar Báltico, após banhar a Noruega, Suécia e
Finlândia. Quando chegam a São Petersburgo, contribuem para a manutenção de uma
temperatura levemente mais alta que sua irmã situada no coração do continente
eurasiano.
Mais
uma vez, eu estava acompanhado por Elena A. Kornilovitch, que se deslocara de
Moscou para ciceronear-me em Leningrado, já que ela ali nascera e sua família é
desta belíssima cidade. Durante a II Guerra Mundial, seus pais ficaram sitiados
na cidade pelas tropas nazistas por quase 900 dias. O cerco começou em 8 de
setembro de 1941 e só veio a ser levantado em 27 de janeiro de 1944. Foi um dos
mais dramáticos e prolongados cercos em toda a história da humanidade e no qual
mais pessoas morreram. As mortes, em torno de 1 milhão de pessoas durante o
cerco, se deveram mais à fome e sede do que propriamente do fogo nazista. Esta
história tem sido retratada em diversas ocasiões no cinema.
Vejam no link abaixo cenas impressionantes do cerco a Leningrado durante a II Guerra Mundial:
Abaixo, reprodução do prospecto vendido antes do espetáculo de balé no Teatro Outubro.
Vejam no link abaixo cenas impressionantes do cerco a Leningrado durante a II Guerra Mundial:
Segunda
e terceira páginas do prospecto deste belo balé.
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Contracapa
onde se pode ver o preço
do prospecto: 8 copeques (8 centavos de rublo). |
Assim,
completamos o relato dessa experiência maravilhosa que marcou minha vida. Não tenho
palavras para descrever tudo o que vivenciei. Aprendi uma grande lição de vida,
acima das ideologias, acima dos preconceitos, acima das distâncias, os seres
humanos quando são bons eles o são em qualquer longitude ou latitude. Aprendi
com os russos um antigo provérbio: “Se
não tens cem rublos, tem cem amigos”. Valeu para sempre!
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