sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Foram cruéis os bandeirantes ?

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Tenho muito pesquisado a história colonial brasileira. Tenho lido muitos e variados autores, de diferentes tendências historiográficas. Um desses autores, Cassiano Ricardo, não era propriamente historiador de formação. Tornou-se um historiador por amor à disciplina. Um dos livros que mais me impressionaram em sua grande produção foi "Marcha Para Oeste" (A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil). Transcrevo abaixo um dos capítulos finais, uma obra-prima de texto. Cassiano foi membro da Academia Brasileira de Letras e viveu num período muito conturbado de nossa história entre os anos 20 e 60 do século XX. Foi integralista (membro do movimento de direita coordenado por Plínio Salgado, na década de 30), e posteriormente assumiu posições políticas mais de centro-direita. Aqui ele nos brinda com páginas imortais que questionam as acusações injustas impostas aos bandeirantes. Essas páginas nos trazem um relato vívido de como foi dura a vida desses personagens fundamentais de nossa história, a quem muito devemos hoje.
Cassiano Ricardo. "Marcha Para Oeste" (A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil).Terceira Edição (Inteiramente revista e acrescida de dois novos capítulos). Vol. I. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio Editora, 1959. Pp. 289-308.
A “CRUELDADE” DO BANDEIRANTE E A VERDADEIRA TÉCNICA DA CONQUISTA
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"Até certo ponto, a pergunta – cruel porque escravizou o índio? – obtém resposta, por exemplo, nos casos de índios trazidos em paz.
A técnica da conquista nos apresenta, muitas vezes, o bandeirante transformado em “apartador de briga” entre tribos rivais. Os casamentos de bandeirantes com as filhas dos caciques dão, à penetração histórica, um raro colorido humano. As instruções, que levavam nos regimentos, quanto ao modo pelo qual deviam ser tratados os selvagens, ilustram muito essa técnica. Só era natural a “defensa” quando os índios atacassem a bandeira.
É comum a defesa do índio pelo próprio bandeirante. As atas da Câmara, em tal sentido, são definitivas. A todo momento, em plena conquista, está o bandeirante lançando mão da “técnica da bondade” – mesmo porque se recomenda que “os capitães nada perdem por serem magnânimos e liberais”.
Até a conquista se pratica, muita vez, pelo “caminho da paz”. É o caso de Fernão Dias Pais, conquistador pacífico dos três reinos que eram os do Tombu, Sondá e Gravitaí.
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Sabe-se como decorreu o curioso episódio:
Dos três caciques, Tombu era o de mais absoluto prestígio. Usava de armas sobre o pórtico do seu “palácio” e eram elas um ramo seco, com três araras vivas. Se morria uma dessas aves, outra era posta em seu lugar imediatamente. Os vassalos só lhe falavam “com os joelhos em terra”; e ele, com uma certa pachorra, que tanto tinha de inocente como de caricatural, se fazia “carregar como em andor” toda a vez que saia do seu trono.
Fernão Dias Pais vai ter com os três caciques. Diz-lhes, com suavidade, o que pretendia: nada de briga; apenas um entendimento cordial e cristão para que todos o seguissem para um país melhor. Pois não é que os morubixabas se convenceram e o seguiram?
Postos em marcha, como se fossem reis magos, morre um deles, o Gravitaí; depois mais, morre o Rei Sondá. Não obstante, prossegue a transmigração e chegam a S. Paulo os cinco mil índios da tribo chefiados por Fernão Dias Pais e pelo Rei Tombu. Este Rei Tombu, diz Pedro Taques, praticava sempre as “virtudes morais”, tendo sido batizado à hora da morte.
Como se vê, consegue o grande bandeirante destronar nada menos de três caciques, trazendo-os amorosamente, com os seus cinco mil vassalos, ao Planalto; isto é, consegue a transmigração pura e simples de uma tribo toda, “sem estrondo de armas nem tiranias de morte”.
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O maior número de escravos nem sempre quer dizer maior escravização. O próprio número parece dispersar os seus efeitos, tornando-a mais problemática.
Do ponto de vista psicológico, há mais escravidão em sujeitar um índio (um só índio) ao trabalho da lavoura do que vinte negros no mesmo mister.
Sabe-se que a escravização do índio foi mais rápida; durou menos que a do negro. Já em 1570 havia uma lei proibindo essa escravização, exceto em justa guerra. Por uma questão de duração, o negro terá sido muito mais escravizado que o índio.
Quem fosse escravo sem o saber (e quantos índios estarão neste caso) seria tão pouco escravo como quem o fosse com resignação e conformismo psicológico (e quantos negros estarão neste caso).
Enfim, o índio estaria menos escravizado na bandeira do que na criação de gado. Menos escravizado na criação de gado do que no trabalho da lavoura ou da indústria açucareira.
O negro, porém, foi mais escravizado que o índio, sob certo aspecto; sendo já que muito pior que a caça ao bugre foi a caça aos negros na África para serem vendidos aqui, em mercado ignóbil. No entanto, os jesuítas nunca notaram isso. Como se entre duas criaturas igualmente escravizadas a igreja pudesse dar preferência à defesa de uma contra a outra. Mais de um clérigo “pregou a escravidão africana [1] com o Evangelho em punho”. Nóbrega pedia que, dos primeiros pretos que viessem, se reservassem duas dúzias para os padres. [2]
No rol dos que combatiam a escravidão vermelha, mas aconselhavam a negra, estava Vieira com os seus sermões. Para ele “só havia um remédio permanente de vida, quando entrassem, com força , escravos de Angola”.
Ainda em 1808, certo bispo se saiu com este opúsculo, cujo título diz tudo: “Concordância das leis de Portugal e das Bulas Pontificais, das quais umas permitem a escravidão dos pretos d’África e outras proíbem a escravidão dos índios do Brasil”.
Sem querer, a gente se lembra logo daquelas palavras que Westermann, no seu livro “Noirs et Blancs em Afrique” reproduz a La Fayette: “le dernier des nègres peut toujour dire au premier des blancs – ne suis-je pas um homme, ton frère?”.
Para o índio, a libertação é o nomadismo; para o negro a liberdade já significa um bem moral e a sua perda é mais sensível, provavelmente. Houve muito maior número de insurreições negras do que vermelhas, na sociedade colonial. Haverá maior onde haja, portanto, maior sacrifício sensível de liberdade.
Uma liberdade que nos interessa, pode deixar de interessar a outra raça, ou a outro indivíduo, atendendo-se a fatores culturais e psicológicos diversos.
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A questão comporta outras reflexões, talvez, não menos interessantes. A bandeira foi quem demonstrou ao mundo a "realidade humana do índio”, até então deformada pelos escritores e pela fábula que o faziam um “monstro” ou um “anjo”.
Tais escritores, pois, colocaram o índio “além” ou “aquém” da realidade humana. Na prática, quando se inaugura a nova sociedade, o que se vê é a deformação selvagem pelo padre na catequese e pelo senhor de engenho, no sedentarismo agrícola.
Em resumo: os escritores do velho mundo, os padres da catequese e os colonizadores do Brasil deformam, invariavelmente, o nosso selvagem: só o bandeirante é que o realiza, aproveitando-o no seu nomadismo, isto é, na sua “especialização psicológica para o movimento” e deslocando-o para uma nova ordem social e humana onde ele entraria em função de suas qualidades específicas.
O padre segrega o índio e o aplica nas suas lavouras, obrigando-o a um sedentarismo mortal. Ao passo que o bandeirante continua o índio e chega a ser chefe de tribo, como Borba Gato no Rio Doce e Pay Pirá entre os bororos.
A sua técnica consiste: em regressar ao primitivo o mais que pode; em assimilar os padrões culturais indígenas; em se mestiçar com o aborígene; em continuar o índio (pois o costume de bandeirar já era indígena); em pacificar o gentio, agindo “amorosamente”, fazendo os da sua tropa casarem com as filhas dos caciques, mandando emissários – que eram os “línguas” – propor a paz, o entendimento cristão e cordial, mesmo a índios sabidamente rebeldes e intratáveis, como aconteceu com os de Cuiabá; reconhecendo o governo das tribos mansas; oferecendo mimos e presentes de toda ordem aos maiorais da selva.
Verdade que o bandeirante caça bugre, muita vez, com o próprio bugre; na bandeira de preia ao silvícola figuram milhares de índios, empregados em caçar os seus irmãos da selva. A ocorrência, entretanto, parece menos dolorosa quando se sabe que bugre contra bugre era coisa natural e imemorial.
Já viviam eles em luta encarniçada uns com os outros. Nesta conjuntura, o que se pode dizer é que o caçador de bugre aproveitou a rivalidade existente entre tribos inimigas para a sua penetração, aliando-se aos tupis contra os tapuias.
O argumento de que era ele um “despovoador” incorrigível pode sofrer a contradita fácil, já aqui feita, de que ir buscar índio aos espanhóis, se despovoava as aldeias e reduções do lado de lá, povoava as do lado de cá.
Não se pode confundir despovoamento com a violenta deslocação de grupos desta ou daquela área social ou cultural para outra em que a bandeira realiza a sua imprevista recomposição de valores humanos.
Aliás, falar-se apenas em bandeira despovoadora já é outro erro grave, sabido que muitas foram, ao contrário, e em sua maior parte, povoadoras por excelência.
5
Alega-se que o “ciclo da caça ao índio” registra, quase sempre, páginas de rubra devastação.
Longe de nós a idéia de transformar os heróis do preamento em santos. Lembre-se, porém, que é esse um meio sagaz de ladear a questão, uma vez que o bandeirismo não é a rigor sinônimo de “caça ao bugre”. Antes, o bandeirante só caça o bugre por mandato do agricultor e nas horas vagas – isto é, quando interrompe o seu objetivo constante e principal, que é o da correria atrás do ouro e das pedras verdes.
Sobre essa “constante” do bandeirismo muito se terá que dizer em capítulos subsequentes, de modo mais detido. Surge ela nesta passagem, apenas para se afirmar que a caça ao bugre como objetivo único ou sistemático do bandeirante é um argumento falso de que os jesuítas espanhóis e certos historiadores unilaterais lançam mão por mera improbidade toda vez que atacam o bandeirismo como cruel.
Dado, contudo, que a caça ao bugre fosse o único objetivo da bandeira, deveríamos perguntar: o bandeirante “caçou” menos ou mais cruelmente do que os outros conquistadores? Este confronto elementar é necessário, uma vez que o verbo “caçar” foi conjugado por todos os povos, tanto na África como na América.
Terá conquistado a palma da glória quem tiver “caçado menos” ou sido “menos cruel”.
6
Contra Raposo Tavares se dizem coisas tenebrosas. A queixa dos jesuítas comove as pedras.
“O que parece mais acertado, dizia um deles, é tomarmos nós o exemplo que nos deram os cristãos de Jesus Maria, os quais, vendo o perigo em que estavam quando começou a queimar-se a igreja, resolveram rezar o padre-nosso, pedindo socorro ao céu, pois na terra não há o que esperar.” Assim falava o Padre Diego, a respeito da invasão do Guairá pelos bandeirantes, numa carta de 1637, existente na coleção De Angelis.
No entanto, ouvimos de Rodolfo Garcia que a entrada de Raposo não está bem estudada num dos seus pontos mais sérios. [3] A sua intenção não era cativar os índios mansos das reduções; tendo chegado a uma de tais reduções, limitou-se a pedir agasalho pra sua tropa faminta, depois de uma jornada que lhe havia custado sacrifícios de toda ordem. Queria a hospitalidade dos jesuítas, e estaria satisfeito. Recebido, porém, com aspereza, revidou ele ao modo pelo qual estava sendo tratado. Foi quando, perdendo a paciência, resolveu mesmo atacar as reduções jesuíticas sem mais contemplação.
“Este homem – dizia o bispo de Pernambuco a respeito de Domingos Jorge Velho – é dos maiores selvagens com quem tenho topado. Quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe, nem se diferença do mais bárbaro tapuia mais que em dizer que é cristão”. (Carta do bispo, em maio de 1697).
No entanto, na 5ª. condição imposta a el-rei para a guerra conta os pretos, o expugnador dos Palmares demonstra que não era o selvagem igual ao tapuia, de que falava o bispo. Não queria ele que as mulheres fossem remetidas mar em fora; além da injustiça, isso seria causa de grande prejuízo. “Se são filhas do Palmar quem as compra dá por elas a quarta parte do seu valor, e se são cativas da costa, e têm crias, é grande crueldade arrancar-lhes dos peitos as crianças; e vendendo as crianças sem as mães, quem é que as há de comprar, e dado que as comprem, que hão de dar por uma criança que fica sem mãe para a acabar de criar? E se os sam-Paulistas, por não acharem quem dê por tais crianças o justo valor, as guardarem para si, para que as querem sem suas mães para as criarem?”
É algo de tocante – como se vê – na sua rudeza.
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A outra lenda, a dos pajens, que os irmãos Leme faziam subir a uma árvore, matando-os em seguida, só pelo gosto de os ver caírem que nem macacos, seria um divertimento trágico se não fosse um “divertimento admirável” com que Manuel Cardoso de Abreu aumentava um ponto aos contos que, em regra, povoam a vida dos homens lendários e façanhudos.
Que eram eles intrépidos fura-matos não há dúvida. Quando os descobridores das minas de Cuiabá elegem Fernão Dias Falcão para cabo maior, prometendo-lhe obediência e fidelidade, e conservam Pascoal Moreira pra guarda-mor, lá está a prova: os autores dessa iniciativa são os irmãos Leme, que assinam a ata em primeiro lugar. Tal o papel que lhes coube na organização do primeiro governo de Cuiabá, só comparável ao que praticam, depois, devolvendo a D. Rodrigo César as prebendas com que o ditador os queria subornar.
Porém, quando se fala em “crueldade” de bandeirante, já se sabe: saltam da história os irmãos terríveis, que Rocha Pita carregou com a tinta grossa dos seus tropos literários.
Tinham eles, ninguém o nega, praticado os seus crimes; entretanto, pra perdoar os irmãos Leme não é preciso estuda-los em face da psicanálise, como tentou alguém. Muito menos confrontar-lhes os crimes com os daquele tempo, nem com os demais que o sertão explica de sobejo.
Judicis oficium est, ut res, ita tempora rerum
Quoerere quoesito tempore tutus eris.
Basta o confronto com os praticados pelos seus quatro espoliadores. Quem são estes? Sebastião Fernandes do Rêgo (aquele gatuno mágico, escamoteador, contrabandista, que fazia ouro virar chumbo), um delator como Cavichi (o pajem que os atraiçoou horrivelmente), um régulo sanguinário como Rodrigo César (que lhes acenara antes com promessas, afagos e honrarias) e um juiz como Godinho Manso (a quem Taunay mimoseia com o amável epíteto de abutre forense).
Desfilem os dois irmãos espoliados e os quatro espoliadores, perante qualquer tribunal. Saiba-se que se tratava de quatro criminosos da cidade, contra dois do sertão, “sem adorno algum de polícia e de tratamento civil”. Tenha-se em vista que havia um prêmio pra quem matasse os irmãos Leme; se o matador fosse negro, alforria; se fosse branco, perdão pra quaisquer outros crimes que já houvesse praticado. Pondere-se que, nessa época se tornou praxe régia perdoar crimes a quem descobrisse ouro e o ter cometido muitos crimes era um título de recomendação (tanto que o prêmio ao matador consistia no perdão imediato a quaisquer crimes que já houvesse cometido anteriormente). Não será difícil senão ato de rudimentar justiça perdoar os heróicos filhos de El Tuerto ao invés de glorificar e premiar os crimes, talvez piores, do primeiro sicário que os matasse. Difícil, senão impossível, ao historiador de hoje seria condenar os dois audazes sertanistas se tivesse que deixar impunes os autores de tamanha pilhagem, entre os quais estava um juiz de braço dado com um gatuno e contrabandista.
Diante de tais criminosos oficiais, os dois filhos de El Tuerto, tão brutalmente justiçados, deixam de ser cruéis pra serem heróis como os que, na linguagem do sertão, mais o foram.
Mais odioso se torna ainda o procedimento de D. Rodrigo por se saber que ele faz “vista grossa”, por ex., a respeito de Domingos Rodrigues do Prado, depois de o haver apontado como régulo e matador. O herói de Pitangui devia ser enforcado “em efígie”, mas depois figura, como um inocente, na bandeira do 2º. Anhangüera que tanto alvoroço causa ao governador da capitania.
Outros casos cabeludos, como de Borba Gato que matou o representante régio e é promovido a tenente-general do mato; o de Gaspar de Godói Colaço, que matou um dos Camargos e que foi nomeado tenente-general da jornada da Vacaria; o de Luís Pedroso de Barros, que agrediu o ouvidor do rio das Mortes, mas que depois abriu o caminho de S. Paulo ao Rio Paraná; são esquecidos de pronto, numa época em que tais crimes eram inevitáveis.
Só os dos irmãos Leme deviam ser cobrados pela lei de Talião.
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Há, ninguém o ignora, uma espécie de vizinhança congênita entre o herói e o bandido. Pra ser herói – isto é que é o diabo – o herói é obrigado a ser bandido; precisa contar com a indulgência dos santos.
O santo perdoa, então, o bandido que há no herói.
Considere-se ainda que todo “fronteiro”, todo conquistador, é sempre herói por um lado e bandido pelo outro. Herói pelo lado de cá (no caso de bandeirismo) bandido pelo de lá. Parece que o bandeirante não iria fugir a esta incoercível dialética; a mesma a que está sujeito, afinal, no plano político, quem faz uma revolução: se triunfa é um herói, se perde, é bandido.
Assim o critério pra julgamento deixa de ser o comum, o particular, o faccioso, o da moral cotidiana, uma vez transposto para o plano político; e tal é o caso do bandeirante em face de qualquer julgamento honesto.
Toda vez que era preciso combater o selvagem, “comedor de carne humana” ou conquistar “melhoramentos para a Coroa”, não se perdoavam os criminosos foragidos e degradados?
Praxe mantida por longo tempo, ainda para a conquista do sertão do Tibagi perdoam-se todos os crimes cometidos por aqueles “que se quiserem [4] empregar nesse utilíssimo serviço”.
Vários criminosos são mandados pra povoar Iguatemi. [5] Estes tinham, em tais ocasiões, a sua utilidade e a sua reabilitação. E quanto, ao lado dos bandidos do bandeirismo, se tornaram heróis! Quase inexistente, a linha que separa o herói do bandido. Um mora no outro, por força de uma violenta transmutação de valores determinada por fatores sociais. Repita-se: Se o bandido triunfa, é herói e é perdoado pelos santos; se perde, fica apenas bandido. A origem de todas as pátrias está escrita com o sangue dos heróis, dos santos e dos bandidos. Nada mais natural.[6] Os cossacos, que conquistaram a Sibéria, sempre foram chamados de bandidos e ladrões, nos documentos governamentais. “Dire où cessait le cossaque et où commençait le brigand était chose malaisé”, proclama Youri Semianov, na sua “A Conquista da Sibéria”.
Quando Garibaldi é qualificado, na Câmara inglesa, de pirata e flibusteiro, John Russell responde, a quem o compara ao herói italiano, que o foi também na Guerra dos Farrapos: “a história é que há de decidir se ele foi pirata e flibusteiro, ou pirata e herói. Em 1688 desembarcava nas costas da Inglaterra um pirata e flibusteiro e a revolução que fez é uma das maiores glórias da nação”. Em toda parte, como se vê, a cantiga é a mesma.
Hoje, quando a matança e o saque são apanágio de certas doutrinas, como acusar aqueles homens ríspidos e atormentados cujo destino seria “vencer ou morrer”?
9
Agora, a pergunta: entre os que caçaram e escravizaram o bugre, quem caçou menos e escravizou menos?
Ora, todos sabemos que os aventureiros espanhóis do século XVI conquistaram o México, a América Central e o Peru (são palavras de Paulo Prado) numa sombria tragédia de sangue e de crueldade. Chegaram a sustentar seus cães com a carne dos pobres índios, segundo o testemunho do bispo de Chiapa. [7]
Schmidel gabava-se de ter tomado parte, sob a chefia de Irala, em verdadeiras “caçadas de homens”. Numa delas foram degolados mil indígenas de uma só vez. Alcide d’Orbigny assim se manifesta, sobre uma das expedições paraguaias: “si l’on croît Schmidel, cette expedition de Irala aurait été l’une des plus cruelles des espagnoles, sous le rapport du traitement barbare qu’ils y firent éprouver aux indigènes”. [8]
Casos de maior crueldade, ocorridos na conquista da América pelos espanhóis, são inúmeros. O processo sistemático, científico, da apropriação da terra conquistada pelo extermínio dos autóctones, (cita-se, aqui, uma observação de Taunay), tão largamente usado nas Canárias e na Flórida, nas Antilhas e no Chile, teve enorme emprego, em pleno século XX, em relação aos Peles-vermelhas dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. [9] Na América do Norte (faz ver Afrânio Peixoto) depois de liberto o escravo negro, passa-se a considerar, reservar terras e bens ao pobre índio norte-americano. Diante (porém) do Museu de Boston está uma estátua de Dallin, que a penitência levantou, de um Pele-vermelha, a erguer os braços a Deus. “Espírito Supremo dos Brancos, tende piedade de nós.”
Releiam-se ainda, sobre este assunto, uns comentários de Sorokin (“Contemporary Sociologial Theories”, 326), referindo-se aos estudos de A. N. Engelgard (“Process as the Evolution of Cruelty”) e aos de Benjamin Kidd (“The Science of Power”). Para o primeiro, a civilização é um produto da crueldade. Todas as histórias de guerra são o apanágio desse princípio, notadamente as de colonização. Para o segundo, a crueldade não decresceu com a civilização de agora. Muito ao contrário, no confronto da segunda metade do século XIX com o começo deste o que se verifica é que o homem se tornou “incomparavelmente mais brutal do que fora antes”. Houve mesmo uma recrudescência da “doutrina pagã que se inspira na onipotência da força”. A discussão, porém, entre os que acreditam na humanização progressiva da guerra e os que provam o contrário é de todo escusada. O mundo aí está, até ameaçado de desaparecer.
Mas um crime não justificaria outro e melhor são argumentos e fatos locais. O próprio Brasil esclarece o seu caso, sem precisão de recorrer a confrontos históricos. O pioneer da bandeira só praticou a crueldade contra a crueldade; pagou com a vida a sua audácia, perecendo expedições inteiras destroçadas pelos paiaguás do Oeste e pelos castelhanos de Mbororé do Sul; pagou com a fome a dureza da conquista e com que fim? Pra que o Brasil existisse, como o vemos no mapa.
Não viesse o índio cair em mãos do bandeirante, teria caído nas do espanhol, incomparavelmente mais cruel em seus métodos de colonização.
E o que é mais grave: Mesmo depois de descido pra nosso lado, os espanhóis queriam arrebata-lo. O caso, já referido no § 2 do “O Índio, na Sociedade Bandeirante”, de Jaguarajuba [10] contando que eles haviam levado os índios de sua aldeia não pode ser deslembrado – sem se falar no caso dos castelhanos no Avanhandava. O que quer dizer, em bom português: teríamos perdido uma ótima ocasião de evitar um mal maior...
Respondida, porém, a pergunta – qual dos povos conquistadores o que menos caçou e escravizou o índio – e o simples confronto com o espanhóis, com os alemães na Venezuela e com os anglo-saxões na América do Norte nos deixa a perder de vista – será o caso de indagar agora qual dos nossos grupos sociais da colônia foi o que menos maltratou o aborígene.
Foi, sem dúvida, aquele que “continuou” o índio e não quem o obrigou ao sedentarismo mortal. Dada a natureza andeja do selvagem, a sua escravização, na bandeira, seria muito menor do que na lavoura ou no serviço do jesuíta... Não só por isso, senão também pela psicologia do grupo em movimento (sentimentos contrários, mas coincidentes) a bandeira é o menos escravocrata, o menos escravizador dos grupos coloniais.
O costume de bandeirar já era indígena (homo primitivus migratorius) e o bandeirismo passa a ser o próprio nomadismo dirigido.
10
As coisas são muito diversas, como se vê.
O bandeirante representa, na terra nova, uma verdade humana cheia de brutalidade e surpresa. Não era apenas o homem realizando uma façanha que o mundo ainda não conhecia. O “super-homem do deserto”, na frase de Euclides, ou o diabo velho botando fogo na água dos rios, na linguagem da legenda, surgia em condições de criar uma nova concepção de vida.
Exigindo o reajustamento de certos conceitos, terá que ser examinado à luz de aspectos inteiramente novos.
Erros de observação surgiram, como era natural. Ainda hoje se pensa, por exemplo, que bandeirante é separatista quando a verdade é que, se há alguém impossibilitado de o ser, é o bandeirante expansionista. Houve quem o julgasse anti-cristão, quando cada bandeirante é um tipo de humildade e de crença em Deus. Também o julgaram apenas um tipo histórico, quando se trata de um “tipo social” em nossa formação. Nababo, quando viveu ele reduzido jà extrema pobreza, sem falar naqueles que foram encontrados mortos, junto à riqueza sonhada. Inimigo dos jesuítas, quando foi ele quem defendeu o jesuíta e o trouxe novamente para o Planalto depois da expulsão; quando padre é uma figura obrigatória em todos os róis de bandeira. Mandão, quando ele é um protetor da ordem nas zonas de turbulência. Déspota, quando ele é o fundador de uma democracia obscura, mas verdadeira.
Nada mais injusto, pois, do que a incompreensão de certos jesuítas que o consideram, sistematicamente, caçador de índio, quando o índio é, muita vez, o seu principal comparsa, na obra da conquista.
11
Ora, os padres não podiam impedir a guerra ao índio, pois toma parte na luta, empregando a violência contra a violência.
“Mais por temor do que por amor se hão de convencer”, diziam Anchieta e Nóbrega, em momentos de pouca angelitude.
Nem poderiam dizer que se horrorizavam com a crueldade do bandeirante, tomando um pormenor como linha geral dos acontecimentos e esquecendo-se de adotar esse mesmo método aos próprios sacerdotes. Isto é, quando julgavam os maus sacerdotes (e estes existiram em grande número), desde aqueles que se pareciam mais com demônios, na frase incisiva de Nóbrega, até alguns outros que viviam no maior escândalo [11], não aplicaram nunca o pormenor ao geral para concluir, apressadamente, que a Igreja foi anticristã e imoral.
Então, porque o Padre Matias Pinto envenenou o bandeirante João Leite da Silva Ortiz, iremos concluir logo que todos os padres seriam do mesmo naipe? Conta-se o caso dos irmãos Leme, mas não se conta o caso dos irmãos Gago...
Estes irmãos Gago eram padres e viviam nas minas goianas “com a maior dissolução, mandando açoitar e matar quem lhes parecesse”. [12] O Padre José Rodrigues Prêto e o beneditino Frei Roberto são, muito antes disso, responsabilizados pelo delito de cunhos falsos.[13] Certo clérigo que Domingos Jorge Velho escolheu, e que desejava “ficar insento da jurisdição dos vigários, sobre ser de vida desmanchada” na opinião do bispo de Pernambuco (1697) “não sabia dizer a diferença entre atração e contrição”. Muitos clérigos, traindo os mandamentos sagrados, bancavam catequistas dos aborígenes com o intuito de lhes usurpar as terras. A provisão régia de 1716 alude ao fato, profligando a tal indústria de que alguns religiosos haviam lançado mão, “de pedirem terras com o título de servir para os índios” quando o seu verdadeiro intuito era “depois ficarem senhores destes chãos”. Há um momento em que el-rei dá o estrilo e não quer saber mais de religiosos nas minas, pois eles “só servem para perturbar e inquietar os seculares”. [14]
Se fossemos, agora, transformar estes casos em regra geral, não cometeríamos a mais dura injustiça contra missionários que exerceram uma atividade benéfica nesse mundo cujo equilíbrio dependia tanto de coisas bem contraditórias?
O mesmo se dá com os bandeirantes. Se os Leme foram terríveis, tal não acontece, entretanto, com Pascoal Moreira, “homem extremamente caritativo que auxiliava e servia a todos com o que tinha” revelando uma bondade de pomba num peito de jaguar. O que parece justo, portanto, em face de tão expressiva paisagem humana é que a contemplemos no inédito da sua totalidade e não apenas no exame mesquinho de dois ou três pormenores que se perderam dentro dela como aparas ou detritos de uma construção que nascia de um terremoto.
Se este ou aquele recorreu à violência, a quase totalidade realiza a conquista afeiçoando ao seu objetivo o material indômito que o mundo selvagem lhe oferecia, numa sábia contemporização humana com as forças contrárias que sempre procurava atrair, sem as destruir.
Não se quer dizer que seria bom que assim fosse, ou como a gente queria que fosse; muito menos que isto agrade a outros que desejariam assim não fosse.
O que espanta é não terem os bandeirantes sido mais violentos do que foram.
12
Assim sendo, de tudo quanto se disser, sem zanga, se poderá concluir que existem erros graves de apreciação e de julgamento relativos à obra do bandeirante e à sua “crueldade”.
Não é justo que alimentemos tais equívocos. Já o costume de julgar uns pelos outros não recomenda a nenhum espírito de justiça. No julgamento do Cristianismo não se irá, por exemplo, reler apenas o drama da Inquisição e as “Terribilidades” de Pombal.
Nem a história da Igreja está encerrada na história da Companhia de Jesus; nem a história da bandeira se resume no capítulo dos irmãos Leme ou da caça ao silvícola.
O julgamento, sem atenção ao meio selvático e à época em que se realizou o fenômeno, é outro disparate. Dizer-se que o bandeirante foi cruel, sem conhecimento da técnica por ele empregada na conquista, chega a ser um absurdo. Acusá-lo de auri sacra fames quando muitos morreram de fome, já não merece contradita porque chega a ser falta de seriedade.
Dado, entretanto, que ele tivesse sido cruel, essa “crueldade” teria sido mínima em confronto com outros capítulos da crueldade humana, escritos pelos conquistadores da América espanhola, pelos agentes da Santa Inquisição e por aquela “geração de índios bestial e feroz” de que fala o jesuíta Aspilcueta Navarro e que quase trucidou a sociedade colonial. E note-se: enquanto, na América espanhola, a conquista é puxada a canhão e cavalaria, o bandeirante faz toda a conquista a pé e só se transforma em cavaleiro no século XVIII, como só no século XVIII é que vai adotar, a rigor, os batelões para transporte de suas bandeiras fluviais. A essa altura, porém, já ele vai enfrentar o índio canoeiro e o índio cavaleiro; e o faz, como se viu, em grande inferioridade de condições.
Enquanto um Pizarro empregava a sua cavalaria contra os indígenas, os indígenas é que empregavam a sua cavalaria contra os bandeirantes, na conquista do Oeste.
13
Para vencer o sertão “mais cruel e mais ínvio do mundo”, o bandeirante foi o menos cruel dos conquistadores.
Mas, que tivesse sido cruel – vá lá. Admitia-se, verbi gratia, o argumento de Afrânio Peixoto.
Ao lado da “crueldade” que ele pratica por mandato, não há como esquecer a que o sertão lhe impõe como já se viu no capítulo “O Sertão na Economia da Bandeira”. [15]
O sertão é que é o grande culpado.
O antagonismo, que se quer estabelecer entre o bandeirante e o jesuíta, peca, como se vê, pela base. Não corresponde à realidade histórica e social do Brasil. Não só o jesuíta foi bandeirante, como também o bandeirante, muita vez, defendeu o jesuíta ardorosamente. Se é verdade que Antônio Raposo Tavares se fez inimigo dos jesuítas, não é menos verdade que Fernão Dias Pais foi o maior amigo deles. Além disso, se o bandeirante é julgado bandido pelo jesuíta, por ter escravizado índio, ainda estará defeituoso esse julgamento porque o jesuíta também escravizou índio nos seus moinhos e nas suas lavouras, para depois preferir a escravização do negro.
Não é possível – aqui está outro ponto que parece digno de meditação – adotar como único meio de exaltação do jesuíta a condenação sistemática do bandeirante, como se aquele só pudesse ser exaltado à custa deste, ao invés de o ser pela grandeza da obra que realizou e que ninguém nega.
Nem parecerá lógico censurar o bandeirante por faltas que o jesuíta também cometeu, confessadamente.
Seja como for, a suposta crueldade e a luta contra o jesuíta são também “causas” ou pelo menos condições da áspera avançada conquistadora. Não foram mencionadas no § 19 de cap. I, por mais caberem aqui. Realmente, o fato de serem cristãos não impediu os calções de couro de entrar em luta com os jesuítas, por motivos já sabidos. E talvez tenha sido essa rixa, desde logo iniciada, que os levou depois a não respeitar os jesuítas espanhóis e sua reduções.
Se isso acontecia com os jesuítas portugueses, por que deixariam em paz os espanhóis? Separando o espiritual do temporal, isto é, a catequese do apresamento do índio, os fura-matos iam buscar índios onde quer que os encontrassem, mesmo os mansos, no Guairá e no Tape.
Os viveiros de índios mansos que o jesuíta cevou nas reduções passam a ser o alvo de muito assalto dos preadores; a ser “focos de atração”.
A princípio o bandeirismo havia dado “causa” à famosa rixa; mas depois a rixa, já insanável, já tornada hábito, tornou-se “causa”, ou então “concausa”, da nenhuma cerimônia com que os “bandoleros de San Pablo” arrasam os redutos jesuíticos espanhóis. Causa ou concausa, portanto, do bandeirismo.
O Bispo de Cardenas é contra os jesuítas? Os preadores de bugre, que também são contra, aproveitam o ensejo (1648) e vão fazer sua féria no Maracaju-Itati...
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Quando tudo isso não fosse exato, ainda assim parece que não há exemplo de nenhuma pátria que tivesse sido fundada sem tais vicissitudes.
Nenhum bandeirante poderia dizer conscientemente: olhe, vou ali fundar uma pátria, e já volto.
Fundar uma pátria, em meio do sertão, não é coisa que se resolva previamente, mediante condições a observar, ou tudo de acordo com os planos preestabelecidos. Não. Há um terremoto humano e surge uma pátria.
Desde o primeiro momento estavam eles lutando contra o pirata e contra o espanhol. O cacique Taiobá, aliado dos espanhóis, ataca os paulistas logo em 1628. Durante certo período, os bandeirantes não se convencem de que espanhóis e portugueses se acham sob o mesmo governo, de mãos dadas; e protestam contra os tais de “villa riqua” [16] que vinham fazer negócio em terras que não eram suas.
A luta contra o espanhol e contra o pirata teria que lhes incutir a idéia de pátria, por força.
Não se falando no caso de Amador Bueno, quando os paulistas já queriam proclamar sua independência, precipitadamente. E quando Amador Bueno da Veiga (já ao tempo das minas) organiza a sua bandeira contra o emboaba, ele não o faz senão como “cabo maior e defensor da pátria”.
(Embora “pátria” não tivesse, aí, a significação mais ampla e complexa que tem hoje, terá a de torrão natal, terra em que se mora; e não é de outro material que a pátria se forma).
Em qualquer hipótese, o bandeirante já leva consigo mesmo uma rudimentar, mas viva, concepção de fronteira. É o caso de “El Tuerto”, o célebre ituano, invocando contra os espanhóis o direito de posse das terras [17] há muito trilhadas pela gente de Piratininga. É o de Pascoal Moreira, o “bandeirante fronteiro” de M’Boitetu.
No mínimo, “trabalhando como os artífices dos panos de rás, que não vêm o desenho e tecem pelo avesso (a comparação é de Capistrano) os bandeirantes, mesmo sem o saber, estavam fazendo o Brasil. 18]
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Mas quem suplica aos paulistas que vão “degolar” os bárbaros é Matias da Cunha, Governador-geral do Brasil; e quando, depois do terrível revés sofrido pelos pernambucanos (eram 600, ficaram só 200) comandados por Abreu Soares, Domingos Jorge Velho entra em ação, com espetacular vitória, Matias o aplaude calorosamente “por haver degolado toda a nação que ali estava”. Naquele tempo, degolar podia ser até um título oficial de glória. Mas também, segundo um documento de 1677, os índios do Vale do S. Francisco “haviam já desbaratado e degolado várias bandeiras paulistas”.
Não é de esquecer ainda que o Capão da Traição e o esquartejamento de Felipe dos Santos, o tribuno do povo, fazem empalidecer, em muito, o suposto banditismo do bandeirante.
O que assusta é, ao contrário, o bandeirante não ter sido o bandido por necessidade que as contingências lhe impunham. É o ele se ter havido – como conclui Jaime Cortesão – “com os padres das missões, por via de regra, com um respeito, uma piedade, uma benevolência de pasmar”.
É possível que o bandeirante seja “bandido”, na dialética da fronteira. Também o será nesta ou naquela passagem em que agiu por conta do agricultor, caçando bugre; ou por conta do próprio sertão.
Banditismo maior, porém (porque intelectual) será o de quem o chama de bandido, sistematicamente; ou por sectarismo jesuítico póstumo, ou perversão daquilo que se chama “humildade diante dos fatos”. Como se por efeito retroativo quisesse estabelecer um ajuste de contas pessoal, numa questão histórica já encerrada.
E se quisermos trazer o caso para os dias de hoje, que se dirá, então, dos indivíduos ou companhias de colonização que ainda agora não hesitam em querer espoliar os nossos indígenas das terras que lhes restam?
Sob vários aspectos, o banditismo moderno será muito mais condenável.
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Teve o homem de Piratininga, muita vez, terra adentro, na sua “dinâmica da mudança”, e em termos de invasão e competição, que descer a uma espécie de “ordem simbiótica” (infra-social) no mais duro apego ao chão selvagem, ao “agro do sertão”, transformando-se em “bicho do mato”, como o chamou certo capitão-general.
Quem tinha (é uma informação do inglês Knivet) um sapo ou uma cobra pra comer considerava-se feliz...
Entrou o fura-mato pelas “gargantas” pra vencer a geografia, e pelos vales úmidos, por causa dos plantios, na luta ecológica da penetração e submissão do naturalismo geográfico ao seu desígnio. Nessa invasão, além do que há de antropológico na mobilidade indígena – pois o sertão lhe oferece o índio e, com o índio, o movimento, as técnicas, os cargueiros vivos, a ciência dos caminhos – vai todo um processo social e cultural.
Aprende ele a chupar raiz de umbuzeiro, a roer sabugo de milho, a matar a sede num olho-d’água, a manejar a flecha já que a arma de fogo nem sempre dá certo; se é escopeta, precisa de mecha pra funcionar, se é mosquete só funciona daquele jeito – um segurando o cano pra outro dar o tiro.
Mas a técnica, num sentido amplo, como a de que se fala neste capítulo, é outra coisa; não consiste só em aceitar e aproveitar os padrões de comportamento indígena e as suas técnicas para o exercício cotidiano desses padrões; é antes o emprego de expedientes persuasivos (fazer casar um dos da tropa com a filha do cacique, fingir que sabe incendiar os rios, oferecer mimos à bugrada, etc.).
A técnica que ele leva e da qual aqui se fala, consiste, antes, num conjunto de procedimentos táticos, numa estratégia – a estratégia da penetração.
Parte a bandeira.
Ela é o Brasil por antecipação.
Leva o ímpeto que lhe fixará as fronteiras, o sangue com que lhe fará o povoamento, a mobilidade com que o tornará presente a si mesmo, a idéia de pátria com que o defende dos espanhóis, a confraternização étnica que é a imagem de sua futura democracia social, os lineamentos com que lhe há de marcar a estruturação política, o germe do self-government que há de florir na Independência.
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Será o caso de perguntar de novo: cruel, o bandeirante?
Cruel foi o fisco espoliador. Cruel o emboaba – um Bento Amaral Coutinho; cruel Assumar, mandando esquartejar Felipe dos Santos; cruel Rodrigo César, na trucidação dos irmãos Leme.
Cruel o sertão."
[1]Evaristo de Morais.
[2] Serafim Leite, obra cit. II, 248.
[3]AURÉLIO PORTO (“História das Missões Orientais do Uruguai”, 1943) confirma o que ao autor deste ensaio havia dito RODOLFO GARCIA: “Queria (Raposo) ser recebido em paz e vinha procurar comida para seu exército”. Recebido à bala, reagiu. Também JAIME CORTESÃO, que ainda não havia publicado a “A Lenda Negra e a Lenda Branca” (“Introdução à História das Bandeiras”) vem depois concluir, no tocante aos atos da suposta crueldade dos bandeirantes, o seu estudo do seguinte modo: “1) Esses atos foram muito mais de ordem singular, praticados por um ou outro bandeirante de ânimo feroz ou truculento do que generalizados à maioria deles. 2) Com os padres das missões os bandeirantes se houveram, por via de regra, com um respeito, uma piedade, uma benevolência de pasmar. 3) A generalização de um ou outro ato condenável, o agravamento tendencioso dos excessos, e a pura invenção de crimes, nos relatos dos jesuítas, veio a formar a lenda negra sobre os bandeirantes. Quando e como?”
É a mesma conclusão a que o A. de “Marcha para Oeste” havia chegado (vol. I, cap. VII, p. 233, 2ª. edição).
[4]Docs. Interessantess, vol. XXXIII, 50.
[5]Idem, vol. 133.
[6]Para R. COURTEVILLE, bandeirante e bandido são a mesma coisa... (Le Mato Grosso”, p. 152).
[7]VASSCONCELOS, apud COUTO DE MAGALHÃES “O Selvagem”, p. 309.
[8]ALCIDE D’ORBIGNY, “Voyage au Centre de l’Amerique, 224.
[9]TAUNAY, “Hist. Geral das Band. Paulistas”, I, p. 60.
[10]Atas, tomo jII, p. 239.
[11]Docs. Ints. XXXII, 37.
[12]Idem, vol XXXIV, 160.
[13]BASÍLIO DE MAGALHÃES, obra cit., 318.
[14]Docs. Ints., vol. 51, p. 197.
[15]Observa PIERRE DEFFONTAINES, no seu “L’Homme et la Forêt”, que o termo selvageria, salvaticus, provém de sylvaticus. A floresta tem ocasionado não só a miséria material como também a miséria moral. A antropofagia, notadamente, não decorre, em geral, de uma extrema ferocidade, mas é a resultante da penúria alimentar do meio selvático. É a floresta a grande culpada. VIDAL DE LA BLACHE alude justamente à “opressão da floresta”. O homem sucumbe sob a violência das energias vegetais. A mata faz o espírito sombrio como ela. O homem da floresta (ARTUR ORLANDO, “Os Bandeirantes”, in Rev. Do Inst. Hist. De S. Paulo, vol XIX, p. 136) não pode ter a mesma imaginação risonha que o da campina coberta de relva ou do litoral movimentado pelo mar.
[16]Vila Rica, capital da região do Guairá, uma das maiores reduções de índios Guarani (ou Carijó), atual território do Paraná, fundada por jesuítas espanhóis. Nota do Autor.
[17]Nasceram eles, os bandeirantes, já com o sentimento de “fronteira”. E o que se vê, por ex., quando precisam de índio (1572) para “correr as fronteiras”, segundo a linguagem da época. No século XVI, essas fronteiras estão próximas da vila, sem dúvida; mas atingem o máximo, indo até aos Andes, no século XVIII.
18]CAPISTRANO DE ABREU, apud Batista Pereira, “A Cidade de Anchieta”, p. 83.
Pergunto eu: algo mais precisa ser dito?

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