No dia 17 de novembro de 1981,
exatamente há 35 anos, chegava eu à União Soviética numa viagem de visitas a
instituições de pesquisas em neurociências, a hospitais psiquiátricos e aos
laboratórios onde trabalhou o grande cientista russo, Ivan Petrovich Pavlov,
prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1904. Foi a maior epopeia (posso assim
dizer) de minha vida. Tal foi possível com a fundamental ajuda do grande e
saudoso amigo, Dr. João Belline Burza, um dos maiores neurocientistas
brasileiros das décadas de 1950/60, que estivera exilado politicamente naquele
país por muitos anos. Em 1975, publiquei meu primeiro livro intitulado
“Introdução à Psiquiatria Reflexológica – As teorias de Ivan Pavlov na
psiquiatria”, que se popularizou e contribuiu muito para a divulgação de suas
teorias no Brasil. Alguns anos depois, através de amigos comuns de São Paulo,
conheci o Dr. Burza que voltara do exílio em 1974. Tornamo-nos muito amigos e o
visitei algumas vezes em sua cidade natal, Ouro Fino, Sul de Minas, para onde
se mudara após ser acometido de grave doença, após torturas no DOI-CODI de São
Paulo, quando de seu retorno da URSS. Sua hospitalidade foi marcante e fomos
grandes amigos até seu passamento em 1989.
Catedral do Arcanjo, onde os czares eram sepultados. Encontram-se aqui 46 túmulos. |
Praça das Catedrais. À esquerda, Catedral da Anunciação. À direita, Catedral de Ivan, o Grande. Praça das Catedrais, Kremlin. Ao fundo, o prédio do antigo Senado, na era dos czares. |
Catedral da Anunciação de N. Senhora (1489), parte sul da Praça das Catedrais do Kremlin. Aqui eram celebrados os batismos e os casamentos dos czares. |
Praça das Catedrais. À esquerda, Catedral da Anunciação. À direita, Catedral de Ivan, o Grande. |
Catedral de São Basílio, detalhes. Praça Vermelha, defronte ao Kremlin. |
Burza havia trabalhado com Piotr
Kusmitch Anokhin, discípulo da última geração de Pavlov (que faleceu em 1936),
nas décadas de 1920/30, e introduzira os conceitos de neurocibernética em
fisiologia (mecanismos de auto-regulação das atividades cerebrais). Ele tinha
cidadania soviética (seu passaporte brasileiro havia sido cassado) e esteve
casado com uma cidadã soviética alguns anos antes. Através de suas amizades e
influências junto a autoridades da Universidade de Moscou, de Leningrado, da
Academia de Ciências da URSS e do Ministério da Saúde, ele obteve, a meu
pedido, um convite para visitar instituições científicas naquele país que eu
tanto já conhecia pela sua literatura e pelos textos científicos.
O Arsenal. Kremlin. |
O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin. |
O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin. |
O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin. Ao fundo, a Torre Spasskaya (No. 1). |
O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin. |
O Arsenal. Kremlin. Ao fundo, a Torre Troitskaya (Trindade). |
Muralha Sul do Kremlin, com a Torre Tanitskaia. A algumas dezenas de metros à sua direita fica o Rio Moscou, que banha a capital e margeia o lado sul do Kremlin. |
Muralha Sul do Kremlin. Torre do Rio Moscou. |
Uma das torres da Muralha Sul do Kremlin, ao lado do Rio Moscou. |
Recebi o convite oficial do
Ministério da Saúde no início de 1981 num texto escrito em língua russa. Minha
emoção só não foi maior do que a que tive após ter sido o texto traduzido por
uma amiga professora de russo em escola de línguas em Belo Horizonte. Após
solicitar o visto da Embaixada Soviética, em Brasília, eu o recebi após seis
meses (era o tempo que se levava para que as autoridades russas pudessem
analisar o perfil social e político de alguém que solicitasse esse visto). O
mundo vivia plenamente a Guerra Fria e todo cuidado era pouco para se avaliar
possíveis espiões nas duas superpotências (USA-URSS). Os turistas comuns
somente podiam entrar no país em grupos dirigidos pela empresa de turismo
estatal Intourist, com guias locais que falavam espanhol. Os passeios eram
todos planejados com antecedência por essa empresa e ninguém podia sair do
roteiro estritamente estabelecido. Eu viajei numa situação especial: fui
sozinho, com meu passaporte, o visto e o convite oficial do Ministério da Saúde
da URSS a tiracolo. Foram meses de preparativos tensos para esse grande evento.
Fiz curso de língua russa por poucos meses, apenas para poder cumprimentar as
pessoas e não passar por deselegante. Mas eu estava com o inglês bem afiado e
contava com a certeza de que os cidadãos das grandes cidades que eu visitaria
(Moscou e Leningrado) falassem a língua de Shakespeare, em função de que as
Olimpíadas de Moscou haviam ocorrido há pouco mais de um ano (1980). Ledo
engano.
Lá cheguei, após escala de uma
semana em casa de amigos em Estocolmo, numa temperatura de -5 graus Celsius. No
aeroporto de Sheremetievo, em Moscou, passei por uma análise rigorosa na cabina
de avaliação de passaporte e visto (eu estava com o convite anexado ao
passaporte), por dois oficiais das Forças Armadas que me fixaram os olhares
intensamente, vendo todos os detalhes de minhas feições, comparando-o com minha
foto no passaporte, por um tempo interminável para mim, que, acredito, tenha
durado uns cinco minutos. Trocamos poucas palavras em inglês, quando expus os
motivos de minha viagem. Eu suava em bicas dentro de um grosso capote para
enfrentar o frio escandinavo, que eu ganhara em Estocolmo, e com quatro camadas
de roupas por baixo. Além do mais, eu levava nos bolsos do capote, pequenos
embrulhos com pedras semi-preciosas de Minas Gerais, para presentear os
professores com quem me encontraria. Com grande alívio, passado esse tempo
infindável, eu os vi pegar um grande carimbo e batê-lo sobre o visto. Por
incrível que pareça, meu passaporte não foi carimbado, numa medida que ainda
não sei exatamente o porquê. Apenas posso imaginar que as autoridades
soviéticas não queriam comprometer um visitante diferenciado (eu não era um
turista normal) com carimbos em seu passaporte, para, posteriormente, não haver
problemas com alfândegas norte-americanas. São apenas suposições. Dei graças a
Deus e fui pegar minhas malas.
O Sino do Czar. Ao fundo, o antigo Senado. |
Estava tão atordoado com tudo
isso, vivia como se estivesse num sonho, que, ao sair da sala de bagagens para
a recepção de passageiros que chegam, não vi um cartaz com uma pessoa onde se
lia “Dr. Correa”. Passei direto e, meio
perturbado, sem saber para onde ir, perguntei a um dos servidores dessa área
onde ficava uma sala de espera. Fui encaminhado para uma grande sala onde havia
duas grandes mesas, com funcionários burocráticos, a quem expliquei minha
situação e lhes passei meus documentos. Eles leram tudo atentamente, sem saber
o que fazer. Pediram que eu me assentasse numa das poltronas da sala, onde
havia mais pessoas que aguardavam solução para suas situações, e passaram a dar
telefonemas, uns atrás dos outros. Meu coração batia acelerado, minha pressão
arterial devia estar nas alturas. E eu pensava com meus botões: “E agora, José,
que o será de mim? Onde fui me meter?” Após quase meia-hora surge um senhor
alto, magro, todo encapotado (todos me pareciam espiões) que conversou com um
dos funcionários. Imediatamente ele apontou-me a este senhor que dirigiu-se a
mim, imediatamente. Em inglês fluente, identificou-se “Sou o Prof. Yurii
Urivaev, do Instituto de Fisiologia Normal P.K. Anokhin, da Universidade de
Moscou, e estou a recepciona-lo aqui, Dr. Correa”. Foi como se o céu descesse,
cheio de anjos, capitaneados pelo anjo Gabriel para me salvar daquela situação
terrível.
Ala Sul do Kremlin, vista do Rio Moscou. Foto Alexandergusev, Wikipedia. |
A gentileza do Prof. Urivaev
jamais será esquecida por mim. Ajudou-me com as malas, saímos do aeroporto, nos
aproximamos de um carro que já nos esperava. Era o carro do Instituto de
Fisiologia da Universidade, com seu motorista que se mantivera com o motor
ligado todo esse tempo, para que o motor não desligasse com o frio. A partir
daí, sentado confortavelmente no banco de trás, contei aos dois minha aventura,
o estresse que passara, e o alívio que tive ao ter essa tão cálida acolhida. O
Prof. Urivaev era um homem ilustrado. Havia feito pós-doutorado na Universidade
da Califórnia, Estados Unidos, e já estivera em diversas universidades europeias.
Minha amizade com ele perdurou até a alguns anos quando, após a queda do regime
soviético, não tive mais notícias dele, em 1991. Tentei localiza-lo, mas foi em
vão. Continuarei tentando.
Passeios a pé e patinação em Arkhangelskoye, a 40 Km de Moscou. |
Gatinhos em Arkhangelskoye, a 40 km de Moscou. |
Foram 15 dias que estive na União
Soviética, com tudo pago pelo governo, inclusive as refeições diárias. Gastei
apenas o valor das passagens de ida-e-volta para o país e presentes que adquiri
para mim, minha família, colegas e amigos no Brasil. Foi a viagem mais
importante de minha vida, a divisora de águas, tanto cientificamente, quanto
ideologicamente, quando vi, in loco, a realidade do socialismo e suas mazelas.
Mas vi também as belezas do povo russo, de sua arte, sua arquitetura, sua
amabilidade e duas de suas mais belas cidades. Sua literatura eu já conhecia bem
e admiro até hoje. Não me canso de dizer que foi a leitura da obra de
Dostoievsky a responsável por eu ter seguido o caminho profissional que assumi.
Nesta postagem comemorativa desses 34 anos, revelo algumas fotos dessa epopeia
que marcou minha vida e que compartilho com os amigos do Facebook.
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