sábado, 26 de novembro de 2016

Minha Viagem à União Soviética em 1981


Monumentos da arquitetura ortodoxa russa. Praça das Catedrais. Kremlin.
À esquerda, a Catedral e o Campanário de Ivan, o Grande (1508).
À direita, a Catedral do Arcanjo (1505-1508),
onde os czares eram sepultados.


No dia 17 de novembro de 1981, exatamente há 35 anos, chegava eu à União Soviética numa viagem de visitas a instituições de pesquisas em neurociências, a hospitais psiquiátricos e aos laboratórios onde trabalhou o grande cientista russo, Ivan Petrovich Pavlov, prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1904. Foi a maior epopeia (posso assim dizer) de minha vida. Tal foi possível com a fundamental ajuda do grande e saudoso amigo, Dr. João Belline Burza, um dos maiores neurocientistas brasileiros das décadas de 1950/60, que estivera exilado politicamente naquele país por muitos anos. Em 1975, publiquei meu primeiro livro intitulado “Introdução à Psiquiatria Reflexológica – As teorias de Ivan Pavlov na psiquiatria”, que se popularizou e contribuiu muito para a divulgação de suas teorias no Brasil. Alguns anos depois, através de amigos comuns de São Paulo, conheci o Dr. Burza que voltara do exílio em 1974. Tornamo-nos muito amigos e o visitei algumas vezes em sua cidade natal, Ouro Fino, Sul de Minas, para onde se mudara após ser acometido de grave doença, após torturas no DOI-CODI de São Paulo, quando de seu retorno da URSS. Sua hospitalidade foi marcante e fomos grandes amigos até seu passamento em 1989.



Catedral do Arcanjo, onde os czares eram sepultados. 
Encontram-se aqui 46 túmulos.



Praça das Catedrais. À esquerda, Catedral da Anunciação. À direita, 
Catedral de Ivan, o Grande. Praça das Catedrais, Kremlin. 
Ao fundo, o prédio do antigo Senado, na era dos czares.



Catedral da Anunciação de N. Senhora (1489), 
parte sul da Praça das Catedrais do Kremlin. 
Aqui eram celebrados os
batismos e os casamentos dos czares.


Catedral da Assunção de N. Senhora (1475-1479).
Lado norte da Praça das Catedrais, no Kremlin.
Aqui os czares eram coroados até o início do século XX
e também entronizados todos os patriarcas da 

Igreja Ortodoxa Russa.


Praça das Catedrais. À esquerda, Catedral 
da Anunciação. À direita, Catedral de Ivan, o Grande.
 

Catedral de São Basílio, detalhes. Praça Vermelha, 
defronte ao Kremlin.


Burza havia trabalhado com Piotr Kusmitch Anokhin, discípulo da última geração de Pavlov (que faleceu em 1936), nas décadas de 1920/30, e introduzira os conceitos de neurocibernética em fisiologia (mecanismos de auto-regulação das atividades cerebrais). Ele tinha cidadania soviética (seu passaporte brasileiro havia sido cassado) e esteve casado com uma cidadã soviética alguns anos antes. Através de suas amizades e influências junto a autoridades da Universidade de Moscou, de Leningrado, da Academia de Ciências da URSS e do Ministério da Saúde, ele obteve, a meu pedido, um convite para visitar instituições científicas naquele país que eu tanto já conhecia pela sua literatura e pelos textos científicos.



O Arsenal. Kremlin.



O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin.



O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin.



O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin. Ao fundo, 
a Torre Spasskaya (No. 1).



O Palácio dos Czares (sua antiga residência). Kremlin.



O Arsenal. Kremlin. Ao fundo, a Torre Troitskaya (Trindade).



Muralha Sul do Kremlin, com a Torre Tanitskaia. A algumas dezenas
de metros à sua direita fica o Rio Moscou, que banha 
a capital e margeia o lado sul do Kremlin.



Muralha Sul do Kremlin. Torre do Rio Moscou.



Uma das torres da Muralha Sul do Kremlin, 
ao lado do Rio Moscou.


Recebi o convite oficial do Ministério da Saúde no início de 1981 num texto escrito em língua russa. Minha emoção só não foi maior do que a que tive após ter sido o texto traduzido por uma amiga professora de russo em escola de línguas em Belo Horizonte. Após solicitar o visto da Embaixada Soviética, em Brasília, eu o recebi após seis meses (era o tempo que se levava para que as autoridades russas pudessem analisar o perfil social e político de alguém que solicitasse esse visto). O mundo vivia plenamente a Guerra Fria e todo cuidado era pouco para se avaliar possíveis espiões nas duas superpotências (USA-URSS). Os turistas comuns somente podiam entrar no país em grupos dirigidos pela empresa de turismo estatal Intourist, com guias locais que falavam espanhol. Os passeios eram todos planejados com antecedência por essa empresa e ninguém podia sair do roteiro estritamente estabelecido. Eu viajei numa situação especial: fui sozinho, com meu passaporte, o visto e o convite oficial do Ministério da Saúde da URSS a tiracolo. Foram meses de preparativos tensos para esse grande evento. Fiz curso de língua russa por poucos meses, apenas para poder cumprimentar as pessoas e não passar por deselegante. Mas eu estava com o inglês bem afiado e contava com a certeza de que os cidadãos das grandes cidades que eu visitaria (Moscou e Leningrado) falassem a língua de Shakespeare, em função de que as Olimpíadas de Moscou haviam ocorrido há pouco mais de um ano (1980). Ledo engano.



O Canhão do Czar (1486), colocado no local por Ivan, o Terrível, 
para a defesa da fortaleza. Na época, só perdia em tamanho 
para o canhão do Sultão Muçulmano Maomé II, 
que sitiou e tomou Constantinopla, em 1453. 
Nunca deu um tiro. Boca de 890 mm. 
Ala norte da Praça das Catedrais. Kremlin.
À esquerda, a Catedral da Assunção de N. Senhora. À direita, 
o Palácio Patriarcal e a Catedral dos 12 Apóstolos. 
Em primeiro plano, a boca do Canhão do Czar (1486), 
de 890 mm, foi colocado no local por Ivan, o Terrível. 
Ala norte da Praça das Catedrais. Kremlin.


Lá cheguei, após escala de uma semana em casa de amigos em Estocolmo, numa temperatura de -5 graus Celsius. No aeroporto de Sheremetievo, em Moscou, passei por uma análise rigorosa na cabina de avaliação de passaporte e visto (eu estava com o convite anexado ao passaporte), por dois oficiais das Forças Armadas que me fixaram os olhares intensamente, vendo todos os detalhes de minhas feições, comparando-o com minha foto no passaporte, por um tempo interminável para mim, que, acredito, tenha durado uns cinco minutos. Trocamos poucas palavras em inglês, quando expus os motivos de minha viagem. Eu suava em bicas dentro de um grosso capote para enfrentar o frio escandinavo, que eu ganhara em Estocolmo, e com quatro camadas de roupas por baixo. Além do mais, eu levava nos bolsos do capote, pequenos embrulhos com pedras semi-preciosas de Minas Gerais, para presentear os professores com quem me encontraria. Com grande alívio, passado esse tempo infindável, eu os vi pegar um grande carimbo e batê-lo sobre o visto. Por incrível que pareça, meu passaporte não foi carimbado, numa medida que ainda não sei exatamente o porquê. Apenas posso imaginar que as autoridades soviéticas não queriam comprometer um visitante diferenciado (eu não era um turista normal) com carimbos em seu passaporte, para, posteriormente, não haver problemas com alfândegas norte-americanas. São apenas suposições. Dei graças a Deus e fui pegar minhas malas.



O Sino do Czar (1735), defronte a Catedral e 
Campanário de Ivan, o Grande. Fundido no próprio local, 
ao passar pelo processo de resfriamento, caiu e se fraturou, 
sendo mantido no local até hoje. Largura: 6,60 m. 
Altura: 6,16 m.


O Sino do Czar. Ao fundo, o antigo Senado.


Estava tão atordoado com tudo isso, vivia como se estivesse num sonho, que, ao sair da sala de bagagens para a recepção de passageiros que chegam, não vi um cartaz com uma pessoa onde se lia “Dr. Correa”.  Passei direto e, meio perturbado, sem saber para onde ir, perguntei a um dos servidores dessa área onde ficava uma sala de espera. Fui encaminhado para uma grande sala onde havia duas grandes mesas, com funcionários burocráticos, a quem expliquei minha situação e lhes passei meus documentos. Eles leram tudo atentamente, sem saber o que fazer. Pediram que eu me assentasse numa das poltronas da sala, onde havia mais pessoas que aguardavam solução para suas situações, e passaram a dar telefonemas, uns atrás dos outros. Meu coração batia acelerado, minha pressão arterial devia estar nas alturas. E eu pensava com meus botões: “E agora, José, que o será de mim? Onde fui me meter?” Após quase meia-hora surge um senhor alto, magro, todo encapotado (todos me pareciam espiões) que conversou com um dos funcionários. Imediatamente ele apontou-me a este senhor que dirigiu-se a mim, imediatamente. Em inglês fluente, identificou-se “Sou o Prof. Yurii Urivaev, do Instituto de Fisiologia Normal P.K. Anokhin, da Universidade de Moscou, e estou a recepciona-lo aqui, Dr. Correa”. Foi como se o céu descesse, cheio de anjos, capitaneados pelo anjo Gabriel para me salvar daquela situação terrível.




Ala Sul do Kremlin, vista do Rio Moscou. 
Foto Alexandergusev, Wikipedia.
A gentileza do Prof. Urivaev jamais será esquecida por mim. Ajudou-me com as malas, saímos do aeroporto, nos aproximamos de um carro que já nos esperava. Era o carro do Instituto de Fisiologia da Universidade, com seu motorista que se mantivera com o motor ligado todo esse tempo, para que o motor não desligasse com o frio. A partir daí, sentado confortavelmente no banco de trás, contei aos dois minha aventura, o estresse que passara, e o alívio que tive ao ter essa tão cálida acolhida. O Prof. Urivaev era um homem ilustrado. Havia feito pós-doutorado na Universidade da Califórnia, Estados Unidos, e já estivera em diversas universidades europeias. Minha amizade com ele perdurou até a alguns anos quando, após a queda do regime soviético, não tive mais notícias dele, em 1991. Tentei localiza-lo, mas foi em vão. Continuarei tentando.



Passeios a pé e patinação em Arkhangelskoye, a 40 Km de Moscou.



Gatinhos em Arkhangelskoye, a 40 km de Moscou.

Foram 15 dias que estive na União Soviética, com tudo pago pelo governo, inclusive as refeições diárias. Gastei apenas o valor das passagens de ida-e-volta para o país e presentes que adquiri para mim, minha família, colegas e amigos no Brasil. Foi a viagem mais importante de minha vida, a divisora de águas, tanto cientificamente, quanto ideologicamente, quando vi, in loco, a realidade do socialismo e suas mazelas. Mas vi também as belezas do povo russo, de sua arte, sua arquitetura, sua amabilidade e duas de suas mais belas cidades. Sua literatura eu já conhecia bem e admiro até hoje. Não me canso de dizer que foi a leitura da obra de Dostoievsky a responsável por eu ter seguido o caminho profissional que assumi. Nesta postagem comemorativa desses 34 anos, revelo algumas fotos dessa epopeia que marcou minha vida e que compartilho com os amigos do Facebook.



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